Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Eu tenho outra

Eu fui cansando de tantas coisas que eu nem sei por onde começar

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Acho que cheguei a falar pra você, algumas vezes, da minha vontade de experimentar uma mulher. Estamos juntos há dois anos, e antes de você estive com outro homem por meia década. Minha mãe, há muito tempo, me disse que só uma mulher tem a capacidade de entender profunda e verdadeiramente outra e, não à toa, tenho lembrado compulsivamente dessa frase e do dia em que ela, passando Nivea (aquele da latinha azul) nas pernas, me disse isso, meio que dando uma dica para o futuro.

Eu fui cansando de tantas coisas que eu nem sei por onde começar. Primeiro, nunca entendi por que você insistia em falar de si mesmo quando eu chegava fazendo piadas. Poxa, nunca lhe pareceu óbvio o tanto de súplica e desespero contido em minha autoironia? Transformar temores ainda pouco interpretados em narrações divertidas era apenas um jeito muito refinado de lhe pedir socorro. Eu sempre tomei o cuidado de lhe parecer absolutamente incrível mesmo quando estava me sentindo um lixo. Eu estou apenas flertando comigo mesma através do seu interesse. Então, por favor, perceba quando é a hora de calar a minha boca com as minhas próprias verdades indizíveis em vez de me falar: "Putz, comigo foi ainda pior".

Reconstituição do consultório onde Sigmund Freud atendia seus pacientes - Rogério Assis/Folhapress

Eu cansei também da bagunça da sua sala. Por Deus, você tem cinquenta anos! Eu passava o tempo todo querendo arrumar sua escrivaninha, limpar os farelos da sua poltrona, abrir a janela escancarando de uma vez o sebo da indolência narcísica que você guarda dentro dos livros. Por fim, desligue esse telefone! Ainda que fosse um teatro o que eu fazia na sua frente, toda pessoa educada sabe que é devido desligar o telefone durante os espetáculos.

Eu tive contato com Flora por intermédio de uma antiga professora. Ela me disse: "Vai lá, conhece ela, você vai ver". Foi pouco antes do Natal, e a rua Augusta estava um caos. Calor, barulho, gente se lançando com aquela truculência genuína à necessidade próxima e improvável de ser amorosa com parentes. Tinha tudo para ser confuso e incômodo, mas Flora me recebeu como se fosse possível comprar pequenas bolhas de acolhimento intelectual e afetuoso. Em vez de bonecos de heróis, plantas. E as plantas sempre me dão a sensação de que, se eu enfiar a mão na terra, passará na hora a vontade de dar uma pequena falecida. Primeiro porque amo enfiar a mão na terra, depois porque eu não amaria estar totalmente embaixo dela.

Durante algumas semanas, me dividi entre você e Flora, no que chamei de "a traição mais neurótica possível". Até que houve um dia em que sua sala estava especialmente zoneada (a toalha de rosto mais uma vez no chão) e você estava especialmente às voltas com a sua irritabilidade por não ter o sucesso literário que almejou na juventude e seu telefone estava especialmente tocando sem parar e então eu te disse: "Eu preciso voltar a transar e você não está me ajudando. Tem uma mulher me ajudando. Vou ficar com ela". Você riu e resmungou algo como: "E por que não os dois?". Ao que eu respondi: "Porque não tenho dinheiro". E você replicou: "Se eu cobrasse ainda mais caro, aposto que você ficaria". E assim terminamos. Escolhi ficar com a terapeuta que alinha os enfeites dos móveis. Me parece muito respeitoso que apenas a minha obscuridade pareça desaprumada. O silêncio tão preenchedor, apesar de ser hora do almoço (e eu estar morta de fome), e o dia em que ela falou "Mas, peraí, por que você está rindo se isso é triste?!" me lembram sempre a minha mãe passando creme nas pernas. E isso já é tudo.

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