Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Pão embolorado mata?

Eu já googlei isso uma dezena de vezes

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Talvez você não tenha isso que eu tenho. Desde criança sempre nutri enorme curiosidade a respeito do funcionamento cerebral das pessoas que não têm isso que eu tenho. Na hora do recreio, observava meus amiguinhos sendo apenas muito óbvios em seus papéis infantis e ficava encantada com aquele primevo exemplar humano profundamente solar, simples e funcional. Se queriam degustar o cachorro-quente da cantina, comiam com a confiança plena de um bebê que mama até dormir. Se eram obrigados a usar a privada de um banheiro público, se entregavam com a imperturbabilidade do embrião nadador de líquido amniótico.

Já eu, desde os sete anos, era diariamente acometida por um vazio imenso que hoje aprendi a chamar de: naquela época ainda não existia o Google. Caso existisse, eu abdicaria com facilidade dos tormentos a que era exposta naquela época (aula de queimada, aula de trigonometria, aula de religião) e passaria boa parte do ensino médio pesquisando sobre os malefícios da salsicha com purê de batata para a manutenção das boas bactérias do intestino. Hoje sei, de tanto ler sobre o assunto e conversar com pessoas que tanto leem sobre o assunto, que a boa reputação dos pequenos domiciliados de nosso segundo cérebro nos importa muito mais que a nossa própria perante a sociedade.

Pães embolorados encontrados numa rede de supermercados - Reprodução

Na adolescência, eu ficava besta de ver uma classe inteira da faculdade combinar, sem nenhuma angústia ou medo de acidente terrível ou de envenenamento ou de vírus gravíssimo, uma viagem para o inferno. Quem se lembra daqueles encontros em cidades do interior para a celebração dos jogos universitários? Meu Deus! Alugavam a pior casa, a mais barata e mais imunda e mais caindo aos pedaços e mais cheia de insetos e colchões putrefatos e perigo de assalto e tomadas em curto-circuito. Eu tinha verdadeira fascinação por esses jovens. Eu sempre ia para essas viagens e, depois de no máximo umas oito horas sofrendo pesadas descargas de cortisol, ficava tão doente que meu pai ia me buscar.

Ontem, em meio a uma correria sem fim para entregar esta coluna, alimentar minha filha, ir à fisioterapia e chegar a tempo ao trabalho, comi uma fatia de pão inteira até notar, no último pedacinho, que ele estava embolorado. Na hora fui invadida pela minha já muito conhecida e temida sirene de desgraças. Eu começo a apitar inteira como uma panela de pressão prestes a explodir. É um som ensurdecedor dentro da minha cabeça e inaudível para o mundo. Enquanto isso, o brado de um martelo macabro crava a cada meio segundo a ininterrupta pergunta: pão embolorado mata? Não mata, eu respondo. Nós já passamos por isso, lembra? Eu já googlei isso uma dezena de vezes.

Eu sempre me diverti com certa dificuldade. Vejam vocês que na última sexta, estava numa superanimada pista de dança, acompanhada de amigos queridos, com a tranquilidade de ter deixado minha filha dormindo com a avó (mentira, eu estava culpada e ansiosa), com uma noite de possibilidades me convidando a abraçar a leveza e o aprazimento, e de verdade, eu só queria era invadir a rodinha de dança na qual estava o Drauzio Varella e perguntar: "Por que agora meu refluxo não apenas me dá essa sensação horrível de elevador de Vick Vaporub, mas também me causa uns espasmos secos e rudes que me fazem soluçar alto e ritmadamente?".

Planejei todas as formas de chegar até o Drauzio, mas ele estava bastante empenhando em sua dança de "robô que arrisca certo gingado" e eu fui obrigada a deixá-lo em paz. Quer dizer"... Mas, hein, Drauzio? Hein? Por quê?

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