Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Dolores

Olha pra gente como se quisesse alugar ossos e músculos e saúde mental

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Estou em um hotel, rodeada por montanhas e pessoas solícitas servindo chás e frutas. Já contei mais de 50 tipos de flores e borboletas. No entanto, de tudo o que a esplendorosa natureza oferece, o que mais me intriga é essa senhora que apelidei de Dolores.

Ela ignora por completo o paraíso e tem aquela cara de quem comeu e não gostou. Penso que de fato não gostou, pois sempre a vejo encrencando com garçons: o prato estava muito seco, frio, temperado, demorado. Seu marido é mais manso e, talvez por amor (ou porque ele também seja infinitamente chato em outros quesitos), a atura bravamente. E não seria o amor um combinado de você me suporta e eu te tolero? Não sei. Ainda não sou a Dolores e tenho pavor de ser.

ALDECAstudio / Adobe Stock

Escutei ontem ele falando: "Mas você acabou de elogiar esse queijo e já está reclamando do cheiro? Por que você acha que tudo está estragado?". Fiquei com vontade de intervir e dizer que quem tem medo de estar estragando é a própria Dolores. Quem tem medo de estar molenga, branquela, malcheirosa e cotidiana, como um queijo branco, é ela! Dolores cafunga o pedaço flácido e supostamente inofensivo: "Por trás dessa aparência boboca de um simples desjejum moram muitos perigos!". Ela está excitada, coitada, sonhando consigo mesma.

Hoje foi um dia ensolarado, lindo, de fazer chorar quem ousasse encarar o céu. E Dolores puta da vida, toda de preto, chapelão, cheia de protetor e mágoa. "O gerente falou que ia esquentar a piscina, mas ela está apenas morna!" E chamou o gerente. E botou mais hóspedes na briga. Antes estavam todos tranquilos com a ineficiência da hotelaria brasileira, com a falha humana, com o prometido e jamais cumprido, mas ela estava corcunda, raspando os dentes de cima nos de baixo, unhando as palmas das mãos. Fechando-se como uma concha ressentida pela mentira da pérola. Ela queria a piscina pelando, porque é o que dizia no site da merda daquele hotel! E ela queria pinhão, porque na cidade estava rolando a porra do Festival do Pinhão!

Tenho evitado ficar muito perto, pois não quero descobrir seu verdadeiro nome. A letra "l" a protege de se chamar apenas "Dores" e simboliza seu corpo meio magrelo andando pelo jardim, experimentando sempre controladamente. Vai que se apaixona pela geleia de damasco caseira e descobre que é industrializada? Vai que coloca muita expectativa em preencher suas lacunas com a maternidade e descobre que há partes nossas tão sombrias que nunca estaremos de fato bem? Vai que dorme bem relaxada e sua mãe morre, porque desde pequena pressente que se não estiver sempre perto e atenta, alguma desgraça pode acontecer? Dolores está passada como aquele queijo branco e não suporta ter que se enfiar num pão e seguir seus dias. Ao mesmo tempo, que dádiva poder estar aqui e continuar. É a balança dos pesares que a cansa tanto.

Ela carrega sua filha com uma mistura de amor louco e descaso físico. Suas costas escalariam o mundo pela menina, ao mesmo tempo que são fracas demais para pertencimentos e dependências. Dolores olha pra gente como se quisesse alugar ossos e músculos e saúde mental. 

Dolores é muito parecida comigo, mas tem o dobro de anos e de problemas. Está hospedada no maior quarto e se sente sufocar. Tem quase tudo e é quase infeliz. Eu tenho horror dela, de me misturar com gente assim. Eu queria demais abraçá-la, bem forte, até quebrar limites e aparências, até que fôssemos enfim a mesma pessoa e parasse de doer tanto.

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