Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Eu conto mães

Em todo movimento eu só espero poder ter uma mãe por perto caso eu caia ou voe

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Filhote de panda e sua mãe comem bambu no zoológico de Kuala Lumpur, na Malásia
A panda Yi Yi e sua mãe, Liang Liang, no centro de conservação da Malásia - Zhu Wei - 1º.ago.19/Xinhua

Tem gente que, no trânsito, soma compulsivamente os números das placas dos carros. Outros contam os passos ou os segundos da respiração. Eu conto mães.

Eu escolho amigas que poderiam, em momentos de carência ou descontrolado aprazimento, agir como minhas mães. Não exatamente a minha mãe, mas também uma mãe.

Eu gosto de amigas com mães que poderiam ser minhas mães. Eu fui filha dos meus avós e sou filha dos meus médicos. Eu tento ser filha das atuais esposas dos meus ex-namorados, das minhas vizinhas, dos meus analistas, de cada pessoa que trabalhou comigo, de cada pessoa que trabalhou para mim.

Eu só consigo comer porque sou filha de todas as pessoas que cozinham e só consigo dormir porque sou filha de todos que me ajudam a fazer minha filha dormir. Eu só posso trabalhar porque é como mãe e como filha que se gera tudo. Eu tentei ser filha de todos os meus professores e sou filha do meu marido.

Sou também mãe do meu marido. Penso o tempo todo o que uma boa mãe faria pelos meus amigos, pela minha sogra e por pessoas de quem eu gostaria de ser mais próxima. Eu só pude ficar com homens que me lembraram, de alguma forma, a minha mãe. E só pude ficar com homens que me deixaram ser mãe deles. Eu entendo toda e qualquer relação de afeto a partir desse primeiro e único lugar de amor.

Eu tento ser mãe da minha filha até nos momentos em que me deito em seu colo e penso que em breve, assim que ela entender, vai poder ser minha mãe. Eu tento obsessivamente ser filha da minha mãe. E sou muito e quase o tempo todo, mas, quando não consigo, dali a pouco volto para tentar de novo. Eu sou o eterno joão-bobo do amor materno.

Eu tento obstinadamente ser mãe da minha mãe e, em vários momentos, porque é muito confuso e toma muito tempo, eu preciso não ser nada dela. Não ser nadinha dela e sair pelo mundo procurando mãe em cada pessoa que passa na rua, em cada transeunte que atravessa na quadra lá longe. Em quem dirige, pilota ou apenas se perde. Buscando ser filha de cada indivíduo que me encara em uma sala de espera, que se locomove lentamente numa fila. Das criaturas todas em shows e shoppings e check-ups nos laboratórios médicos. 

Em cada bom-dia, cada porta que eu seguro, cada agradecimento, cada palavra automática, cada olhar desencontrado, cada vontade de ignorar a humanidade e cada preguiça. Em todo movimento eu só espero poder ter uma mãe por perto caso eu caia ou voe. Eu só espero poder ser mãe das quedas e saltos livres de quem, como eu, também acorda todos os dias com esse buraco à espera do reenlace impossível. À espera do momento de perfeição perdido sempre que alongamos estaturas.

Toda manhã eu saio da cama e coloco uma roupa e leio o jornal e corto frutas e penso que preciso ir atrás. Apenas isso: ir atrás. Penso que é escrevendo ou fazendo reuniões ou guardando dinheiro ou tomando vacinas ou estudando ou tendo mais filhos ou fazendo esteira ou comendo mais escarola. E é isso mesmo. É procurando outras como minha mãe e sendo outra e sendo mãe. O que me lança para o mundo, o que me joga para a frente, o que me distancia de ser uma coisa sem nome é ver do outro lado da rua o primeiro abraço em minha mãe, a primeira abocanhada em seu seio. É ver minha filha. Ser mãe e ser filha: o absolutamente tudo em uma redundância impecável.

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