Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

O asno alado

Só de ficar perto dele você passa a concatenar as ideias como alguém ridículo

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Tenho um amigo de infância que é um cara assim... eu ia escrever burrinho, mas vamos chamá-lo de “desprovido de neurose”.

Uma definição bem rasa de neurótico é: toda pessoa não psicótica. Mas esse meu amigo não me parece maluco, tampouco angustiado com o que quer que seja. Acho fascinante.

Ele até passava de ano, decorava umas coisas e tal, entrou em uma faculdade razoável, mas lhe faltava algo no espírito. Nada se criava ali. Nada entrava em combustão. Nada doía (a não ser a gengiva, uma vez, porque ele abriu uma cerveja no dente, enquanto ria abobado).

No ginásio a classe organizou uma viagem de formatura e, desde aquela idade, eu já contabilizava todos os problemas oferecidos pelo mundo sempre que eu me distanciasse mais de 100 quilômetros de casa.

Ele não, ele parecia flutuar. Escombros ou ondas do mar: ele era apenas descomplicado. Um dia, admirando sua inutilidade neurotransmissora, pensei: “Olha lá o asno alado!”.

Ilustração para a coluna "O Asno Alado"
Ilustração para a coluna "O Asno Alado" - Fly_dragonfly - stock.adobe.com

Seu corpo vive na atmosfera das pessoas sem sinapses. Seu cabelo tem mais brilho e é mais esvoaçante que o de todos.

A clássica propaganda de xampu certamente foi idealizada por alguém ou muito bobo ou com muita inveja dos bobos.

Ficamos amigos porque ele me achava “uma figurinha” e eu, em contrapartida, pensava que se um dia pirasse, só de olhar para ele voltaria ao normal.

O asno alado é tão calmo e literal que só de ficar perto você passa a concatenar as ideias como alguém ridículo, ou melhor: ridiculamente feliz.

Ele trabalha, paga as contas, casou, conta algumas histórias que a gente não acha graça, chora em filmes quando algum lutador supera tudo. Mas, sei lá. É outra espécie humana. Não lê jornal (então tudo bem a gente falar mal dele aqui), o último livro que folheou devia ser obrigatório para o vestibular.

Seriado não consegue acompanhar: “chega uma hora que fica confuso”. Gostava de novela quando era a única coisa que tinha na TV, agora, porque tem muita coisa, não liga a TV porque não gosta de nada complicado.

O asno alado, apesar de ter 40 anos, não sabe que existe uma coisa chamada check-up anual. Uma vez ele falou pra mim: “No trabalho eu penso quando precisa, mas daí no carro eu já parei de pensar ou nem lembro o que pensei. E, chegando em casa, tô pra te falar: eu não penso mais nada!”.

Eu duvidei. Eu quis entender. Eu expliquei que era impossível. A gente pensa o tempo todo. Não? Inclusive, tem aí o nosso inconsciente, que pensa para além e “para trás” e para sempre. Ele não entendeu.

Acho mesmo bonito o viço da sua pele jamais acinzentada pela corrosão cerebral. Uma cor de quem nunca perderia uma noite de sono depois de assistir a um documentário sobre trigêmeos separados (no nascimento) por um psiquiatra a fim de estudar se nossos transtornos psíquicos são mais acentuados pela genética ou pela falta de afeto.

Ele nem sabe o que quer dizer “documentário”. Ele corre na esteira até sentir exaustão, a mulher me contou.

Meu amigo chegou à maturidade com poucas rugas na testa e quando falei que estou cozinhando com água mineral, preocupadíssima com a nova lei que abranda o controle dos agrotóxicos, ele apenas riu e como eram bonitos seus dentes e bom o seu hálito.

O bafo de quem não torce as vísceras pela constatação sombria da existência. É uma dádiva poder voar enquanto nossa cabeça nos soterra vivos no buraco da inquietude.

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