Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Digressãofobia

Nenhuma conversa atinge sequer a segunda linha, que dirá chegar ao fim

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Toda vez que meu marido avisa que precisamos visitar seu tio-avô, minha garganta automaticamente inflama, meu nariz entope e meu corpo fica dolorido e pesado.

Até conhecer esse senhor, eu não sabia que um ser humano poderia ser tão chato a ponto de instaurar em mim um mecanismo de defesa chamado “virose emocional”. O apelidei recentemente de “coroavírus”.

Trata-se de um homem bastante culto, conhecido entre os familiares por ser uma enciclopédia viva. Isso poderia ser bom, mas é um horror. A desgraça do vovô não para um segundo de falar. E nem é esse o maior problema. O que o torna insuportável são as digressões.

Imagine que você anda bem cansado, atolado de coisas pra resolver e completamente sem tempo pra nada. Então você, parado no farol da Henrique Schaumann, lembra que precisa dar um pulo na rua Turiassu pra resolver uma burocracia qualquer.

Dá um soquinho no volante e, humilhado pelas obrigações, coloca o endereço no Waze. Descobre então que, pela Sumaré, o trajeto é praticamente uma linha reta e dura apenas 11 minutos. Você sorri de leve e pensa “eu aguento”.

Avenida Sumaré, na zona oeste da capital paulista
Avenida Sumaré, na zona oeste da capital paulista - Danilo Verpa - 09.mar.2016/Folhapress

E assim a vida segue: uma tremenda chatice que, com pequenas pausas quando comemos doce, dormimos, vemos o Jeremy Strong ou beijamos a nuca suada de um filho, dá pra aguentar.

Mas, quando visito a Barsa ambulante, a situação muda de figura. Imagine que você anda bem cansado, atolado de coisas pra resolver e completamente sem tempo pra nada. Então você, parado na porta
da casa desse vovô falador-passa-mal, lembra que vai ter de aturá-lo até bem depois da sobremesa (porque, afinal de contas, se você se levantar para ir embora antes, ele vai continuar falando do mesmo jeito e você não vai conseguir sair).

Dá um soquinho na campainha e, humilhado pelas obrigações, pergunta “como vai o senhor?”. Descobre então que o sol começou a lhe dar alergias. E ele vai te mostrar as feridas quando se recorda do eclipse total do sol dos pré-socráticos. E tudo bem, você aguentaria seguir um tanto pela linha Grécia Antiga, mas Tales de Mileto lhe lembrou magneto que lhe lembrou que a ressonância magnética do Einstein estava quebrada.

Túnel. Do tempo. O Tempo na mitologia. Devorava os filhos. Seus filhos comiam mal quando eram pequenos. Hoje em dia o mais velho está gordo. “Gordo não! Gordinho! Nosso filho…” Mas ele não deixa a esposa continuar. O que mesmo ele dizia? Luz no fim do túnel.

Condomínio agora vem com a cobrança de luz embutida, o que é péssimo porque ele perdeu o controle do quanto a empregada gasta no banho. Mas sim, a alergia. E ele vai mostrar onde coça. Contudo o “arro-gagá-ante” abaixa pra levantar a perna da calça e sente travar as costas. Ciático o lembra cianureto. Eu penso “então toma uma dose”. Ah, sim, Tales de Mileto. Ah, sim, travar.

Travas nas portas para o bebê não abrir e pegar uma faca, ele me aconselha. “Sim, eu sei, eu tenho.” “Tem o quê? Dor nas costas?” Eu já nem sei mais. Nenhuma conversa atinge sequer a segunda linha, que dirá chegar ao fim. Vem a sobremesa. Ele queria contar o quê mesmo? “A alergia!!!” —eu grito. O velho não percebe o quanto é autorreferente e egoísta. Ele diz que em 2040, em sua festa de 100 anos, vai deixar a gente falar um pouco. Bocejamos.

Todos têm síndrome das pernas inquietas ao seu lado. Ele segue solando. Pra quem? E vai ficando cada vez mais angustiado porque sabe que abriu em torno de si 782 janelas que nunca vai ser capaz de fechar.

Quase mil pseudotemas que morreram antes de se tornar um assunto. Imagine que da Henrique Schaumann à Turiassu leve dos pré-socráticos até 2040. Você iria?

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