Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Você era infeliz e não sabia

O escapismo é o que mantém em nós algum entusiasmo

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Os motivos pelos quais você deve se isolar estão expostos gritante e repetidamente na imprensa, nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais.

Sim, você tem que se proteger, proteger sua família, seus funcionários, os idosos, os imunodeprimidos e, sobretudo, não engrossar o coro dos idiotas que vão colapsar o SUS.

Dito isso, agora me sinto na obrigação de te avisar de outra coisa: nesses dias de confinamento, não se assuste ao descobrir o quanto você pode ser infeliz. Calma, amigo, todos podemos.

Se você achava a maternidade o suprassumo da alegria, o ápice da sua vida, vai entender que só funciona assim porque você sai de casa algumas (muitas?) horas por dia.

O confinamento em casa pode ser uma boa oportunidade para aprimorar o autoconhecimento e a relação espaço/família
O confinamento em casa pode ser uma boa oportunidade para aprimorar o autoconhecimento e a relação espaço/família - stock.adobe.com

Se você achava o seu casamento até que razoável “perto de tudo que tem por aí”, vai começar a fazer contas pra ver se rola se separar ainda nesse mês.

Se você achava o seu cantinho das plantas “um momentinho delícia”, vai finalmente entender que você vive como um rato, numa casa entulhada de merda, numa cidade irrespirável. Suas plantas só te enganavam porque você saía cedo, atrasado, e voltava tarde, cansado.

Meu amigo, a vida é chata pacarai. É isso. E lá no fundinho da alma você sempre soube, mas estava puto demais com o trânsito e as encrencas da firma pra perceber.

Estou dizendo isso porque sou solidária e porque já trabalho em home office há mais de dez anos (dividindo o escritório com meu marido há cerca de três). Então sou experiente em querer largar tudo e
sair correndo. E posso afirmar: essa vontade não passa.

Tem gente com doença grave, desempregada, em luto, criando três filhos sem ajuda de ninguém. A essas pessoas, peço perdão pela crônica leviana.

Mas para mim, e provavelmente para você, os dias de quarentena mostrarão apenas o quanto somos mal-agradecidos e o quanto o escapismo é o que mantém em nós algum entusiasmo.

Claro que amo a minha filha e amo o meu marido (amo bem mais a minha filha) e curto bastante o meu cantinho das plantas. Mas amar não significa se sentir plenamente animada. E eu só sou feliz porque tenho reunião. Desculpe, mas é verdade.

Eu só fico contente nas férias porque estou pensando em todos os trabalhos que vou poder fazer quando voltar mais descansada. Eu só me senti menos louca amamentando porque eu deixava um bloquinho ao lado, pra anotar ideias.

Eu sinto imenso prazer ao brincar com a minha filha porque nas oito horas que antecederam aquele momento eu realizei tarefas, estudei, li, aprovei projetos, recebi elogios profissionais, paguei as minhas contas.

Agora, com meus cursos paralisados, meus empregos que dependem de encontros presenciais também paralisados, ainda me resta escrever. Ou seja: eu tenho pra onde correr. Seria bom que você tivesse também, amigo.

Calma! Antes de dizer ao seu mozão o quanto você o odeia, antes de traumatizar seu filho adolescente com a frase “que merda eu fiz com a minha vida” e antes de enlouquecer e sair quebrando seus vasinhos ridículos de suculentas, respire e repita comigo: a vida é chata pra todo mundo.

A minha vida é um porre. A vida do seu vizinho é insuportável. A gente só estava em reunião, no ar-condicionado, desejando tão loucamente voltar logo pra essa casa apertada e pra essa vida “igualzinha à dos outros e igualzinha à de ontem” que não percebia.

Você queria mais, eu sei. Ah, como era bom ser sozinho e planejar e namorar e viajar sem dia e hora pra voltar. Era bom? Mesmo? Era nada. Era um saco também. Era uma solidão da porra. A gente só não percebia porque estava em reunião. Em suma: fique em casa e lave as mãos.

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