Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Contra o vírus e o verme

Eu vou me agarrar à beleza

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“Meu bem, você tem que acreditar em mim. Ninguém pode destruir assim um grande amor”. Na voz de Gal Costa, do disco “Gal a Todo Vapor”. Agarre-se a essa música, essa letra, essa voz. Deite no escuro, aumente o som. “Meu bem, meu bem, meu bem, eu te amo”. Eu sei, amigos. Aqui também está um caos, por dentro e por fora.

Em Perdizes, agora, fascistas de varanda gourmet usam armas contra a indignação da democracia. Tenho medo que minha filha brinque no parco sol que irradia apesar das cortinas. Não podemos sair e, agora, nem ficar próximos das janelas. Mas a minha resposta é Gal cantando em meu fone de ouvido, bem alto.

Eu vou me agarrar a tudo que é bonito e, uma hora, vírus e vermes passarão. Então minha filha e eu e as músicas mais belas encontraremos, tão saudosas, os passarinhos e as ruas e os amigos e minha mãe e meu pai.

Enquanto a pandemia não passar e o isolamento social for necessário, o jeito é se apegar ao que é bonito e nos agrada
Enquanto a pandemia não passar e o isolamento social for necessário, o jeito é se apegar ao que é bonito e nos agrada - Adobe stock

Procure agora o filme “Carodiário”, do Nanni Moretti. E quando tocar “I’m Your Man”, do Leonard Cohen, abrace a beleza. Na sequência da cena tem um trecho de “The Köln Concert”, do Keith Jarrett.

Aperte, esmague, esmurre a beleza. Depois busque mais Keith Jarrett no Google e veja o músico trepando com o piano. Que pianista, meu Deus! Você tem algum instrumento musical aí? Trepe com ele.

Que lindas as palavras que soarão mal aos ouvidos dos fanáticos que metem o hino nacional todo dia, às 20h30, nas orelhas dos vizinhos. Mas não falemos disso nesta coluna. Eu estava na segunda fileira quando Keith Jarrett tocou na Sala São Paulo. Ele gemia enquanto tocava. Encoxava o piano. Eu estou abraçada agora a essa lembrança.

Minha filha gosta de ficar deitada comigo na cama olhando bem grande para dentro dos meus olhos. Nós colocamos os rostos colados e brincamos de olhar bem profundo e bem enorme para dentro uma da outra. E eu penso que ela vai rir, mas ela fica alguns segundos assim até que me faz um carinho no cabelo.

Eu digo “te amo demais”, e ela responde “modemai”. Eu morro e renasço 489 vezes nesse tempo. O choque de adrenalina do amor mais surrealmente gigante. Agarre-se a ele. Sairemos dessa, claro. “I’d be crazy not to follow. Follow where you lead. Your eyes. They turn me”. Radiohead é deprê, mas como me deixa feliz. Vou me agarrar à ptose de Thom Yorke pra sair dessa. Porque, apesar da cara de peixe esquisito, eu vejo tanta beleza.

Um dia o cinema vai voltar, e nossa vida com ele. A plateia do teatro aplaudindo e rindo. Vamos ouvir muitas tosses em um concerto e sentir enfado em vez de medo.

Uma hora minha mãe e meu pai entrarão por essa porta, e o mundo junto com eles. Irei com minha filha comprar mais massinhas em uma loja grande, colorida e barulhenta. E eu vou me arrepender de ter ido ao shopping, e não a um parque. De ter comprado a Escola da Pepa, em vez de mostrar patinhos em um lago. Porque lá fora há muitas opções, e eu tenho saudade das angústias que elas me traziam. Saudade até de ser uma creep vivendo “in the fake plastic Earth”.

Contra o vírus e o verme, abracemos a beleza. A cena dos violinos no filme “Love in the Afternoon”; o clipe do início do filme “Closer”; ser invadido pela vertigem ao chegar mais alto lendo “A Insustentável Leveza do Ser”; Clarice Lispector estilhaçando o silêncio em palavras como um dos modos desajeitados de amá-lo.

Quem sempre quer vitória e perde a glória de chorar. Estão pra inventar um mar grande o bastante que me assuste e que eu desista de você. Jogando meu corpo no mundo. Eu fui lá fora e vi dois sóis num dia e a vida que ardia sem explicação. Deixe de lado esse baixo astral, erga a cabeça, enfrente o mal. Nós e a arte vamos vencer.

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