Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Fique mal

Há muito tempo eu não sei o que é dizer eu não estou bem

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Desde que a pandemia começou, combinei seriamente comigo que não piraria ou me deprimiria. Sou uma mulher branca que mora em um apartamento na Zona Oeste de São Paulo.

Tenho emprego, plano médico bom (o equivalente carioca a ser muito saudável) e vinte anos de terapia nas costas. “Pense no sofrimento de tantas pessoas neste país”, eu dizia a mim mesma todos os dias, quando lutava pra sair da cama.

Meu marido, vez ou outra, se permite “ter uma baixa”. Então passa uma tarde com o olhar (e a audição) perdido. Eu o invejo. Ele tem pais jovens e com uma situação financeira que não o preocupa. Sua filha tem uma mãe neurótica e atentíssima (eu). E ao seu lado está uma parceira (eu, de novo) que vai acabar dando um jeito de animar a casa novamente.

Meu pai, que mora sozinho e tem quase 80 anos, passou a me ligar semanalmente para reclamar de um desânimo pesado que o derruba, inerte, no sofá.

Minha mãe, 74 anos na semana que vem, passou a me falar coisas como: “É isso, uma hora todo mundo morre”. Quando me perguntam por que vivo em psicanalistas, psiquiatras e neurologistas, eu deveria responder que não é fácil fazer terapia por tanta gente.

Eu queria chorar e dizer que estou apavorada, horrorizada. Com esse presidente e esse vírus e essas mortes –e, pelo amor de Deus, que falta me faz sair e ver amigos! Mas sou cercada por pessoas que precisam mais de mim do que eu deles (será?), e meu lema passou a ser manter a sanidade, a força de trabalho e a disponibilidade física, psíquica e financeira.

Acontece que –fica aqui meu beijão para o Freud– o mar revolto das nossas angústias precisa quebrar em alguma praia, e passei a ter as piores enxaquecas de todos os tempos. Crises que chegam a durar dez dias. Qualquer perfume ou luz acesa me fazem querer vomitar um enroladinho de bile com alma.

Minhas dores no pescoço e nas costas pioraram tanto que nem aumentando a dose de Lyrica para 3 comprimidos por dia eu me livro delas. Me receitaram novos remédios que me causaram gastrite, tontura, hipomania e princípios de pânico. Meu joelho esquerdo combinou uma inflamação com a banda esquerda da minha bunda e passei duas semanas andando pela casa feito o Slot.

Me pego com fetiches bizarros: um homem me aplica um pouco de morfina, e eu falo em seu ouvido: “Nossa, com você eu sou eu mesma!”.

Há muito tempo eu não sei o que é dizer “eu não estou bem” a uma pessoa não remunerada por mim e ela realmente se preocupar com isso. Mantenho a postos uma junta médica que pode bem pouco contra a minha urgente necessidade de ser cuidada.

Cada vez que minha filha de dois anos esquece por meio segundo que é um bebê e me abraça como se quisesse me confortar (enxergando em mim os dois anos de idade que já tive um dia), eu penso que não deveria ser tão difícil perceber o outro. A gente não deixa de ser criança porque cuida de uma criança.

A gente não deixa de ser filho porque os pais viraram nossos filhos. A gente não deixa de precisar do lado bom da mãe apenas porque teve de colocar limites no lado ruim. A gente não deixa de ser mulher só porque briga pra ter os mesmos direitos que os homens.

A gente não deixa de querer um orgasmo só porque toma antidepressivo. A gente não deixa de ser humana porque a maioria da população do país vive de forma desumana. Eu estou muito triste e assustada e cansada. E hoje eu vou ficar mal.

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