Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Eu <3 máscara

Me dei conta de que poderia tranquilamente me passar por outra pessoa

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Ontem eu estava na rua, de cabelo preso, óculos escuros e máscara, quando uma criança de uns dez anos insistiu em me chamar de mãe. Me dei conta de que poderia tranquilamente me passar por outra pessoa e fui tomada por um prazer inenarrável, seguido de uma vontade profunda de fazer merda.

Tipo entrar numa sorveteria, provar uma colherzinha de cada um dos 47 sabores disponíveis (por baixo da máscara) e, depois de me deliciar com todos, lançar meu veredito: “Eu acho sorvete o fim da picada. Veneno puro. Muco com açúcar”. E sair indignada.

Passear por entre vasos de murano ou taças de cristal com uma mochila gigantesca nas costas, daquelas usadas por quem vai acampar durante seis meses, abrir um mapa enorme e começar a procurar por algo: “Se o sol se põe a Oeste, logo…”.

Salvar cachorrinhos que ficam expostos em pet shops. Tossir e borrifar álcool em gel na nuca de quem não usa máscara. Ir ao ateliê do Roberto Camasmie com a camiseta que eu estou agora, que tem o suvaco furado e uma mancha de suco verde, e exigir que ele me retrate: “Como assim ‘Bernardi Teixeira Pinto’ não é quatrocentão?”

Chegar ao balcão de uma farmácia movimentada e realizar um sonho de infância. Falar alto a palavra “oxiúro”, também conhecido como prurido anal. Tem palavra mais horrorosa do que essa? “O que vocês têm aí para O-X-I-Ú-R-O?”. Perguntaria isso e ainda me roçaria em uma pilastra, com o entusiasmo inequívoco de uma comichão. Torceria para a farmácia estar abarrotada de gente. Sobretudo mocinhas doces com seus namorados fortes. E eles se entreolhariam querendo rir, querendo morrer.

Meter um pijama felpudo, entrar em uma loja de colchões bem cara no Jardim Paulistano, escolher um daqueles que custa R$ 15 mil e pedir para fazer um teste. “Claro, senhora.” Claro não, meu filho. Apaga a luz, faz favor! Não é pra testar? Então vamos fazer direito: eu vim pra dormir. Se querem cobrar 15 paus em um colchão, vão ter que cantar baixinho “Brilha, brilha, estrelinha” até eu atingir o sono REM. E depois de oito horas eu apenas me levantaria e sairia mancando.

Imagina virar a rainha do trocadilho idiota? Em um shopping, alugar um daqueles bichos de pelúcia motorizados, de preferência um leão, e entrar, bem decidida, em uma joalheria: “Boa tarde, eu e meu noivo viemos ver alianças. Nada muito oneroso ou ele vira uma fera”.

Em uma loja de celular, quando alguém oferecesse o tal “chip extra totalmente gratuito como cortesia”, começaria a fazer um documentário e imitar a voz do Sérgio Chapelin: “Chips extra totalmente gratuitos como cortesia, quem são, onde vivem, como suportam tantos anos sob a mais descarada mentira?”.

Tia Ana, 98 anos, única rica da família, nunca ajudou um filho, um neto, um bisneto. Foi cruel com todos os funcionários. Nunca registrou uma empregada doméstica. Fica o dia inteiro na internet defendendo o Bolsonaro. Passou a vida repetindo incansavelmente, para todas as pessoas, suas duas frases prediletas: 1- “Nossa, tá muito magra, tá doente?”; 2- “Nossa, tá muito gorda, tá doente?”. Ah, tia Ana, eu queria parar com um carro de som em frente à janela do seu quarto. E por cem horas (ou até a senhora falecer, o que vier primeiro) deixar o alto-falante perguntando: “Tia Ana, tá muito magra, tá doente? Tia Ana, tá muito gorda, tá doente? Tia Ana, tá muito magra, tá doente? Tia Ana, tá muito gorda, tá doente? Tia Ana, tá muito magra, tá doente? Tia Ana, tá muito gorda, tá doente?"

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