Durante esta pandemia de coronavírus, quando olhamos em demasia (além do suportável?) para dentro tanto de nossos lares quanto de nós mesmos, a leitura de “A Casa na Rua Mango”, um clássico dos anos 1980, se torna ainda mais lírica e singular.
“Eu não faço mais de Chicago a minha casa, mas Chicago ainda faz sua casa em mim. Eu tenho histórias de Chicago para serem escritas. Enquanto essas histórias me chutarem por dentro. Chicago ainda será casa”.
A latina Esperanza, alter ego de Sandra Cisneros, tem como dom a transformação: a solidão e o não pertencimento em um livro que vendeu mais de 6 milhões de exemplares e foi traduzido para mais de 20 idiomas; famílias pobres e expatriadas em personagens preciosos e reais; pequenos contos (entrelaçados) em um romance; pensamentos implicantes e caóticos, típicos de uma voz mais imatura, embalados por uma literatura bem construída e cortante; a infância e a juventude em uma obra grandiosa.
Confesso adorar esse estilo tão pessoal, tão íntimo, como se escrever não fosse um mero exercício estilístico, mas sim um impulso urgente e vital.
E esta edição ainda vem com uma pérola: uma apresentação belíssima da autora, na qual ela conta que, desde muito pequena —e enquanto as outras garotas só pensavam em casamento— sonhava com “uma casa silenciosa e só pra ela”.
A moradia que desejou por tantos anos “superar”, que dava vergonha, a residência que as pessoas apontavam com desdém dizendo “você mora ali?” é justamente a casa que fez de Cisneros uma escritora, que lhe deu independência, como lhe aconselhou uma tia muito doente: “Você tem que continuar escrevendo. Vai te manter livre”.
A irmã Nenny, que não se parece com ela, exceto pela risada; as meninas que vendem bicicleta e amizade; o velho da loja de móveis usados; Sally, a menina com olhos de Egito (triste porque ser linda é muito perigoso); a família porto-riquenha e a prima do Louie que usa roupas de náilon escuras, muita maquiagem e que nunca pode sair (mas fica na porta cantando, esperando elogios de meninos idiotas).
Expor reminiscência da rua Mango seria desmerecê-las ou, finalmente, inventá-las e libertá-las? Literatura é prova de amor e coragem. “Nós fazemos isso porque o mundo em que vivemos é uma casa em chamas e as pessoas que amamos estão queimando”.
Na fotografia tirada em seu escritório sem porta, sem espaço e sem aquecimento (em um prédio tão feio que seu pai, quando a visitava, dizia baixinho: “hippie”), a jovem Sandra —enfim sozinha, escrevendo este livro e sem saber ainda o quanto a sua estreia na literatura seria celebrada— nos observa.
Ela tem medo de ir ao cinema, mas vai mesmo assim e assiste a “Os Homens Preferem as Loiras”, com Marilyn Monroe cantando “Diamonds Are a Girl’s Best Friend”. Ao chegar em casa, chora por não ter diamantes. Chora como faz quase todos os dias. E sabe que não é de joias que sente falta.
Arrisco dizer que a dor de não pertencer é um buraco que sangra para sempre. Ela não deseja mais morar com seus pais, mas o desprendimento causa vertigens. Ela não quer se casar, ela quer escrever, e posa para as fotos com cara de escritora, mesmo sentindo tanto medo. Ela tem rosto e nome de mexicana nos Estados Unidos profundamente preconceituosos.
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