Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

A corretora possessiva

Peço perdão por uma improvável traição dentro de um relacionamento inexistente

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Em fevereiro deste ano, eu comecei a procurar um apartamento mais espaçoso e cheguei a analisar alguns por fotos e outros presencialmente. Logo veio a pandemia e interrompi o périplo por longos sete meses. Nesta semana, de máscara e tomando todos os cuidados, retomei a busca.

Eis que estou saindo de um prédio na rua Maranhão quando escuto um gritinho ardido e indignado vindo em minha direção: “Ah não! Não pode ser!”.

Ela se apresenta como fulana da corretora não sei qual e diz que me mandou várias opções de imóveis no começo do ano: “E a senhora”, faz cara de nojinho, “nunca gostava de nada”. Diz que está cansada demais, que é sempre assim: ela manda o link, e a pessoa vai ver com outro corretor. Fala alto, chamando a atenção de um porteiro que faz aquele movimento de “essa senhora é zureta”, mexendo o dedo em círculos ao redor da orelha.

Porque tenho raiva de homem chamando mulher de louca, começo a me explicar para a corretora possessiva. Peço perdão por uma improvável traição dentro de um relacionamento inexistente. Lamento não ter decidido com agilidade uma compra que zeraria por completo todo o dinheiro que guardei em vida: “A gente tem que ser chata com essas coisas, né?”. E ela responde, como se tivesse acabado de me pegar nua sentada na face do seu marido: “Eu só esperava que fosse correta”.

Penso em dizer que ela não está bem e precisa de ajuda, mas sei que não existe nenhuma outra frase que ofenda mais um ser humano que não está bem e precisando de ajuda. Então apenas comunico que, de qualquer forma, eu não iria comprar o apartamento que acabara de ver.

Mas a corretora psicótica se equilibra num salto tortuoso e vem atrás de mim. Seu buço está suado, pois brigar claramente a lubrifica. Perco a paciência e falo alto também. Digo que não me recordo de sua figura, tampouco de ela ter me mandado a referência do imóvel que eu tinha visitado minutos antes. Explico que fevereiro ficou num limbo distante, um tempo feliz em que a gente desconfiava de que era angustiado porque, talvez, um dia, em um futuro distópico, pudesse vir a falecer. E que sua desrazão e agressividade devem ter muito mais a ver com tudo o que estamos passando. Ela não desmonta a postura de ataque, não quer papo, não quer acolhimento. Essa mulher se vestiu e saiu de casa sem saber o quanto desejava descarregar sua libido reprimida em um embate imobiliário. Acontece que meu ódio não transa cinquentonas que exageram na micropigmentação da sobrancelha (parecia o logotipo da Nike), e só consegui sentir tanta pena que fiquei sem ar. Ela começa a procurar no celular o tal email que jura ter me enviado. “Olha aqui, ó! Dia 10 de fevereiro! Às 7h27 da noite! Exatamente esse endereço. O quarto andar! E você respondeu dizendo que piso frio e sanca invertida deveriam dar cadeia.” Então, aliviada (ainda que eu prefira sentir uma culpa disparatada ao vazio existencial causado por uma cena completamente ilógica), explico que vim para analisar o décimo andar, e não o quarto. Pronto! Resolvido! E tento correr dali.

A sujeita vem atrás de mim, arrependida, perguntando se pode me mandar mais opções. Eu digo que é melhor não. Ela quer saber por quê. Digo que já tenho alguns apartamentos em negociação. Ela quer saber onde. Que rua? Que número? Com quem? Tenho vontade de dizer que não quero que ela exista. E que se não desaparecer da minha frente vou lhe dar uma cotovelada no olho. Não falo nada disso e assinto. Pode me enviar mais opções. À tarde ela me escreve dizendo que não vai mandar nada, porque tem certeza de que eu vou visitar com outro.

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