Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Peixe embrulhado em jornal

Ah, então você está aproveitando para vender seu peixe no centenário do periódico?

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Desisti de fazer a crônica de autodeboche —meu tipo preferido—, contando de um almoço na sede da Folha de S.Paulo no qual dei tantos foras que o Antonio Prata se viu obrigado a explicar para a Angela Alonso e a Maria Hermínia Tavares: “Conheço a Tati há muitos anos, ela é inteligente, só está nervosa”.

Desisti de fazer a crônica meio lírica, meio deslumbrada, narrando meu almoço com o Sérgio Dávila e o Otavio Frias Filho no MoDi do shopping Higienópolis, quando ficou claro que todo o meu “descabimento” poderia finalmente ganhar um contorno quentinho. Foram mais de 30 anos tentando pertencer a algum lugar. Eu não prestava muito para as reuniões de família, para a hora do recreio, para as cervejadas da faculdade e muito menos para os dez anos que passei fazendo hora extra para vender sabonete. Otavio tinha escrito a orelha do meu livro “Depois a Louca Sou Eu” e decidido que minha contribuição, a princípio apenas online, ganharia espaço também no jornal impresso —e eu, apesar de já ser bem velha, me senti uma criança ganhando uma espécie de bilhete dourado que me possibilitaria, finalmente, brincar com pirações e pensamentos antes dignos apenas de recalcamento.

Pensei em fazer um daqueles textos de obituário: “O dia em que a escritora de relações amorosas disfuncionais deixou de trabalhar para revistas que gostavam de explorar o lado sexual das mulheres e pôde ser lida no maior jornal do país”. “Pelo amor! Chega de matéria sobre clitóris!”, foi o que eu berrei em uma sessão de terapia uma semana antes de escrever um texto aqui debatendo sobre vulvas expostas e perceber que o problema era comigo.

Hoje tenho tanta visibilidade neste jornal que até minha mãe se atrapalha: “Mas que dia é pra te ler, cazzo?”. Escrevo aqui toda sexta; publico minhas resenhas para a Folha Corrida às terças; apresento o podcast “Meu Inconsciente Coletivo”, no qual entrevisto psicanalistas e que tem episódios novos todas as sextas; e, porque não consigo parar, vem aí a coluna “Nosso Estranho Amor”, na qual estarei com Milly Lacombe, Pedro Mairal e Chico Felitti para falarmos de paixões, porque a vida, por favor, é mais do que Covid-19 e Bolsonaro.

“Ah, então você está mesmo aproveitando para vender seu peixe no centenário do periódico?” Sim, embrulhado em jornal! Ou melhor: digamos que eu esteja usando essa data tão importante para anunciar um aquário inteiro. Eu respeito o fato de que, para os colunistas mais velhos (ou apenas para os mais politizados), a Folha represente tantos momentos históricos do país. E os leio querendo aprender. Mas, para mim, ela simboliza algo bem mais autocentrado: a grande virada da minha carreira. E não existe homenagem maior que eu possa fazer a esta publicação do que, semanalmente, dar minha cara a tapa, me desnudar, me derramar, e exercer sem limites minha profissão e meu tesão.

Para mim, a Folha significa o dia em que deixei de ser uma menina que escreve “umas coisas engraçadinhas aí” e passei a ser lida pela Fernanda Torres, chamada para a Flip e convidada a ser autora da Companhia das Letras.

“E você não vê defeitos nessa empresa, ô puxa-saco? Não tem nenhum editorial que te irrite? E o passado do jornal? Hein, sua vendida?” Olha, eu entrei aqui arrumando encrenca com feministas e hoje em dia estou de joelhos batendo palmas para elas. Eu quis crescer, amadurecer, melhorar. Ao longo da minha história, tenho registros em meus porões sombrios, mas jamais deixei de trabalhar, muito mais e incansavelmente, a minha luz. Sou um espelho das parcerias que fiz ao longo da vida.

Folha, tô aqui com os olhos cheios de água por motivo de “parei com o antidepressivo”: eu tenho um baita orgulho de trabalhar para vocês. Mesmo. Obrigada demais. Viva a democracia e fora, Bolsonaro!

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