Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Coisas que eu queria te contar

Eu não sabia o que eu estava fazendo, mas sabia que tinha que fazer

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Aos dez anos, eu tinha mania de subir no bidê da casa dos meus avós para me olhar no espelho. Meu avô, que sem saber definiria para sempre meu modo dramático de ver a vida, certa vez me avisou que eu quebraria o bidê e um pedaço bem pontudo e mortífero entraria em mim, me rachando ao meio. Apesar do medo, continuei subindo o tempo todo. As crianças da escola andavam rindo muito da minha cara, e eu ficava o dia inteiro tentando entender o que havia de tão ridículo em mim. Meu avô então passou a me dizer frequentemente que eu era a criança mais bonita do mundo e ele tinha certeza disso e ele era mais velho e sabia das coisas e eu já podia parar de averiguar isso a cada meia hora porque era ele quem estava afirmando. Daí comecei a subir no bidê apenas umas três vezes por dia.

Palco de um teatro vazio, com cortinas fechadas até o chão, e luzes acesas
Eu nunca mais, até hoje, tive um momento tão feliz quanto aquele - simone_n - stock.adobe.com

Na sexta série, tive uma professora de álgebra chamada Áurea que ia dar aula cheia de pulseiras e, enquanto ela circulava os números na lousa ou andava jogando as ancas de um jeito gingado, as pulseiras chacoalhavam e os braços dela, que eram gordinhos e moles, chacoalhavam junto. E eu ficava fascinada vendo a Áurea; jamais os números, mas ela. Depois eu ficava em casa a imitando na frente espelho, não conseguia parar. No final do ano, os alunos podiam ir para um palco mostrar algum talento. Então as meninas lindas bailarinas dançavam, os meninos lindos capoeiristas jogavam, as meninas meio lindas cantavam e os meninos meio lindos tocavam algum instrumento. Eu me inscrevi porque eu queria imitar, na frente de 2.000 alunos, a professora Áurea fazendo círculos na lousa, se locomovendo em círculos e se chacoalhando toda. Peguei um vestido e umas pulseiras da minha mãe e, antes da apresentação, tive uma dor de barriga histórica de nervoso. Eu não sabia o que eu estava fazendo, mas sabia que tinha que fazer (e isso moldaria meu jeito de fazer tudo até hoje). Fui lá na frente e imitei a professora. Todos os 2.000 alunos e todos os professores riram de passar mal. A Áurea dava socos no peito de tanto que ria. Eu nunca mais, até hoje, tive um momento tão feliz quanto aquele.

Na época da faculdade, eu me apaixonei desesperadamente por um rapaz que morava na avenida São João, e todos os trabalhos que eu fiz tinham como tema esse logradouro. Em artes desenhei as árvores da avenida, em propaganda 2 inventei uma campanha para vender a avenida, em redação entrevistei transeuntes na avenida e em fotografia registrei em preto e branco pessoas que viviam embaixo do viaduto da avenida. Eu queria era falar sobre o cara, mas os professores iam me achar muito idiota. Um dia eu acordei chorando, como se soubesse que ele estava sofrendo. Parei em frente à sua porta, mas na hora de falar minha voz não saía. Deixei um bilhete: “Eu sinto que alguma coisa horrível aconteceu. Te amo”. Fiquei horas pensando se amar é que era horrível, mas era o pai dele que tinha falecido. Ele me mandou uma mensagem no pager: “Volta, bruxinha”.

A obstetra dizia: “Rita deve nascer depois do dia 20 de janeiro”. Minha mãe perguntava: “Chegou o berço da Rita?”. Minha sogra comunicava: “Vou mandar bordar ‘Rita’ em algumas toalhas”. Minhas amigas pediam: “Vai ter chá de bebê da Rita?”. Eu pensava: “Quietas, todas! Eu só quero que essa azia acabe!”. Ao final de 40 semanas, no hospital, na sala cirúrgica, faltando minutos para o parto, escreveram “Rita” na lousa. Naquele instante percebi, quase quando já não dava mais tempo, que eu estava grávida, que eu teria uma filha, meu Deus! Eu seria mãe! Eu queria pular de alegria, mas já estava deitada e sem sentir as pernas. Talvez isso explique por que gosto tanto dos livros.

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