Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Pelados em Higienópolis

'Não pode de jeito nenhum! Entendeu? Isso é muito grave!'

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Quando contei que minha filha anda com rompantes de fúria, a terapeuta infantil desconsiderou completamente o país em frangalhos onde vivemos, a pandemia que a deixou quase um ano e meio sem escola (e sem sair nem para ir a uma pracinha), o fato de que todos os adultos à sua volta estão constantemente com medo de morrer (ou de um golpe militar) e de que seus pais estão passando pela crise dos oito anos de casamento (depois de já terem passado pelas crises dos sete anos, dos seis anos, dos cinco anos…). A psicanalista ignorou isso tudo e foi direto ao ponto: “Você fica pelada na frente dela?”.

“Bem, eu tomo banho com a minha filha desde que ela era bebê.”

“Pelada?!”

“Ué? Não é assim que se toma banho?”

“Não pode de jeito nenhum! Entendeu? Isso é muito grave!”

melnikofd - stock.adobe.com

Saí do consultório com a missão de explicar ao meu parceiro que Ritinha estava com a mania insuportável de tacar os dinossauros mais pesados e pontiagudos em nossa face porque ela não sabia o que fazer com a informação de uma vagina desnuda e um pênis balangante.

Comuniquei-lhe que precisávamos, no momento de nosso asseio diário, levar toda a roupa para o banheiro, nos trancar, e jamais sair de lá sem estarmos completamente vestidos. Sob hipótese alguma deveríamos deixar que ela entrasse no recinto enquanto nos lavássemos. Ritinha não entendeu nada. Chorou: “Quero banho com a mamãe!”. Esmurrou a porta: “Papai, deixa eu brincar de chuva com você!”. E, não menos importante, em dias muito quentes, acabou a farra dos meus peitinhos caídos correndo para pegar uma água gelada na cozinha, acabou a malemolência da minha bunda horas na frente do armário escolhendo uma roupa.

Certa feita, esqueci a porta do banheiro destrancada e, ao ver minha filha entrando, mesmo com xampu no cabelo, me enrolei rapidamente na toalha e gritei: “Nããão!!!!!”. Se antes eu não tinha causado nenhum trauma com o meu corpo nu, naquele segundo certamente algo aconteceu no aparelho psíquico da criança: “O que é isso que minha mãe esconde que é tão errado e feio e perigoso?”.

Numa outra noite de aventuras, esqueci o pijama ao me trancafiar em meu cubículo de pecados higiênicos e fiquei alguns minutos mandando áudios para que Pedro me levasse a roupa, já que eu não podia correr o risco de ser pega em perversão a caminho do closet.

Em um sábado à tarde, meu cônjuge estava vendo o noticiário no sofá de casa, trajando apenas sua epiderme morena, quando cheguei da rua com Ritinha. Em um movimento hilário, que apelidei de “le parkour invertido da moralidade freudiana”, ele conseguiu dar uma pirueta para trás e se cobrir com uma manta que estava no chão. Não bastasse existir o casamento para tal, estávamos virando um casal muito ridículo. E para quê? Segundo a psicanalista infantil, a libido sem representação sai em forma de violência. E eu, com meu banho rápido numa terça qualquer, com a minha filha absolutamente absorta em seus brinquedos, estava causando um dano sexual eterno à sua psique. Será?

Bem, estamos aí em torno de uns seis meses sem mostrar nem a pele do antebraço para a Rita e agora, além de ter que lidar com os dinossauros em nossa testa, sofremos também com socos, pontapés, unhadas e uma nova modalidade de uivo histérico que ela faz questão de emitir colada aos nossos tímpanos. Encontramos Polly Pockets desmembradas pela casa, documentos rasgados, flores arrancadas, paredes riscadas. E, perante tudo isso, ontem eu tomei uma decisão crucial para o funcionamento desse lar: dispensei a analista e tomei um bom banho quente com a minha filha.

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