Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Você tem um negro pra indicar?

O cliente tá moderninho, mas ainda precisa fechar o ano no azul

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“Precisamos de um negro”, disse a diretora branca. “Sim, já tínhamos pensado nisso, claro”, concordou o roteirista branco. “Anote aí”, ditou a produtora branca para o assistente branco, “selecionar alguns negros”. Foi quando o assistente branco do roteirista branco veio com a ideia: “Melhor uma negra, não?”.

Todos concordaram: “Duas minorias em uma, o cliente vai pirar”. Sim, o cliente que acabou de se reestruturar completamente e agora, nas redes sociais, fala de coisas que todo cliente fala, porque todo cliente acabou de se reestruturar. E isso significa ter muitas reuniões em que eles perguntam: “Você tem um negro pra indicar?”.

Porém o roteirista branco não queria ser passado para trás pelo seu assistente branco e subiu a voz, empolgado: “Negra e gordinha!”. A diretora branca aplaudiu: “É isso, gente!”.

Carlos David/Adobe stock

Nessa hora, o vice-presidente entrou na sala: “Ouvi a animação e sou muito curioso!”. Logo lhe contaram que até terça precisavam de cinco opções para escolher “uma negra gordinha”, ao que ele pensou, pensou, e arrematou, com as bochechas coradas pelo acréscimo repentino de autoapreço: “Duas negras gordinhas! DUAS! É um casal, porra! São lésbicas!”. Daí foram todos à loucura. Levantaram, fizeram uma roda em torno da mesa, deram as mãos e cantaram “Burguesinha”, do Seu Jorge. Manda a estagiária branca, filha do cliente branco, fazer pipoca. Abre champanhe. PeloamordeDeus, que tarde produtiva! Estavam embasbacados com o poder regenerador que a soma de criatividade e consciência de classe trazia para o ego.

Então começaram a pedir às agências de modelos e aos amigos e a infinitos contatos e até à moça da limpeza: “Precisamos de dez negras gordas para selecionarmos, ao fim, duas negras gordas”.

O roteirista branco perguntou à namorada branca, dona de loja ecoconsciente na Vila Madalena: “Você tem uma negra pra indicar?”. A diretora branca pediu à amiga influenciadora que tinha acabado de se reestruturar completamente e agora, nas redes sociais, fala de coisas que toda influenciadora fala, porque toda influenciadora acabou de se reestruturar: “Miga, peloamor, eu pre-ci-so de uma negra gorda, meu”.

Foi quando o assistente branco do roteirista branco complicou: “Não pode ser uma gorda e a outra com o lábio leporino operado?”. Iam mandar fazer pipoca doce quando o assistente branco da diretora branca, cansado da própria timidez, articulou entrecortado, meio baixo: “Uma trans seria demais?”.

A diretora virou os olhos: “Calma, amor, o cliente tá moderninho, mas ainda precisa fechar o ano no azul, tá?”. O vice-presidente, que estava por ali fazendo uma dancinha, decretou: “Talvez uma gorda e outra gordinha, pra dar mais plasticidade pra cena”.

Muitas negras começaram a chegar, mas aos olhos dos criativos brancos e dos produtores brancos, elas não eram negras no tom “certo” nem muito cheinhas e não “imprimiam” lesbianismo. E agora, como fariam para parecer desconstruídos e cool e uptodate e cheios de humanidade e verdadeiros artistas —que, sim, simpatizam com o Partido Novo (com ressalvas), porque são complexos como todos os artistas legítimos.

O prazo estava acabando, então resolveram nomear seus sonhos ao universo na esperança de concretizá-los. Escreveram “procura-se negra gorda” em todas as redes sociais. Passaram a fazer o estilo camiseta “você tem uma negra gorda pra me indicar?” com paletozinho. E um dia, porque eu termino a minha crônica como eu bem quiser, mil negras, retintas e não retintas, heterossexuais, bis, lésbicas, transexuais ou simplesmente vivendo suas vidas sexuais e identidades em paz, gordas e magras, com cicatrizes e sem cicatrizes… Mas muitas. Mil negras. Invadiram esse predinho desgraçado e rasgaram papéis, viraram mesas, quebraram vidros. Por fim, puseram toda essa equipe progressista bem-intencionada e seus amigos e os clientes para desfilarem pelados para elas. O ar-condicionado no talo. Ao final, foram todos reprovados.

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