Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

A fé possível

Descarreguei meu caminhão de flores erradas aos pés da santa

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No pior dia da minha infecção pela Covid, prometi levar rosas brancas e acender velas para santa Rita. Como acho bastante improvável acreditar em Deus e em santos, escolhi justamente a padroeira das causas impossíveis e foquei toda a minha fé nela (todo o desespero que me faz, uma ou duas vezes por ano, pedir favores). Minha falecida e saudosa avó materna e minha vivíssima e saudosa mãe (ela não fala comigo há 11 dias porque exponho toda a família em meus livros e podcasts) sempre tiveram, em seus quartos, imagens da santa Rita. Como não acreditar no que somos ensinados a amar desde pequenos?

Dirijo até a paróquia do Pari e já na porta descubro que a senhora das flores não vem mais às quintas-feiras. Dentro da igreja, na lojinha onde já comprei chaveiros com água benta e uma infinidade de minissantinhas Rita para presentear toda sorte de parentes e funcionários, sou informada sobre uma feira a algumas quadras dali: “Mas corre porque já deve estar no fim”.

Ao chegar, esbaforida, à banca, só havia rosas vermelhas murchas e margaridas brancas amareladas. E agora? A santa, quando ouviu minha promessa, se apegou mais ao modelo ou ao Pantone? Levei 15 de cada. No caminho fiquei culpada e comprei, em uma papelaria medonha, mais 15 flores brancas artificiais.

Rivaldo Gomes/Folhapress

Descarreguei meu caminhão de flores erradas aos pés da santa e apresentei meu pitch sobre “a fé possível”. Senti um clima bom entre nós, mas faltavam as velas. Retornei à tal lojinha da igreja e dei de cara com uma placa “fechado para o almoço”. Aproveitei a espera para checar mensagens no celular. De frente para a santa, briguei com o financeiro de uma produtora que atrasou o pagamento, topei fazer uma publicidade de botox e ouvi atentamente sobre a noite tórrida de uma amiga casada que trai o marido. Fitei a santa e senti que meu pitch sobre “a fé possível” ainda surtia efeitos. Estava tudo bem.

Surgiu então, dentro da loja fechada, um garoto com fone de ouvido. Ele varria o chão e dançava. A cena me alegrou porque percebi que a empreitada renderia uma crônica. Mas será que eu deveria transformar tudo —meus pensamentos, meus parentes, minha fé— em piada? Pior: deveria sentir tão fortemente que somente isso dá sentido à minha vida? O garoto topou me vender as velas por entre as grades da porta mas… qual tamanho? Como trouxe as flores erradas, seria melhor comprar logo as maiores? Vinte velas gigantes me custariam R$ 300. Eu tinha sido curada de Covid leve ou de ebola?

Agora eu precisava de um isqueiro. O menino aconselhou: “Acende nas outras velas”. E lá fui eu. Só que minha tentativa deu bastante errado e quanto mais eu tentava acender as minhas, mais eu apagava as dos outros. Comecei então a chorar de nervoso. Eram velas de sete, de 21 dias, pessoas com seus problemas e seus milagres. E eu estava ali destruindo tudo. Fui acometida de um TOC fortíssimo e perdi a conta de quantas eu já havia apagado (3 ou 30?). Eu jamais poderia sair dali sem acender todas as velas apagadas do velário. Somadas as minhas, eram umas 50.

Descolei um isqueiro com um flanelinha e voltei. Eu suava muito (um quartinho minúsculo, fechado, quente pacas) enquanto pensava se pegaria o carma de dezenas de católicos. Me deu hipoglicemia, vasovagal e a pressão baixou. Queimei minha mão (que estava com uma quantidade insana de álcool em gel, não sei como não ateei fogo em mim) e falei “porra”, “caralho” e “putaqueopariu” uma infinidade de vezes.

Ao final, uma das minhas velas tombou, levando consigo, em um belo e sagrado efeito dominó, uma quantidade grande de agradecimentos —meus e de outros pecadores. Fiquei de voltar.

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