Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Chora menino

O que sua mente acreditava ser o néctar da luxúria científica em forma de privilégio

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Quando foi se aproximando a data em que eu poderia me vacinar contra a Covid, amigos me aconselharam a entrar em um grupo de Telegram chamado “Vacina SP” para ficar informada sobre o tamanho das filas.

Fui logo aceita na aparentemente agradável massa dos amantes da ciência e não demorei a descobrir que o imenso grupo ali disposto estava unido por outra razão: perseguir enlouquecidamente o imunizante da Pfizer.

Raquel, foto sorridente no dia do seu casamento, já estava puta, e não eram nem oito da manhã: “Vim até esse fim de mundo chamado Chora Menino, correndo risco porque meu carro chama atenção, e a Pfizer acabou de acabar. Deram 30 doses e já voltaram pra AZ. Me recusei a tomar e quase fui linchada! Ainda tive que passar por isso!”.

Na sequência, Andréa, foto na praia fazendo o V de vitória (ou apenas um símbolo que ficou marcado para sempre como “sou meio bobo e vou a festas com gente boba”), respondeu: “Defende-se tanto a democracia nesse país e, na hora que a gente quer escolher a marca da vacina ou se vai tomar vacina, simplesmente não podemos?!”.

Rivaldo Gomes - 5.jul/Folhapress

Fábio, foto correndo em uma maratona, escreveu em caixa-alta: “Na Alexandre Dumas parece que tem”. Dezenas de pessoas começaram então a colocá-lo contra a parede: “Você acha ou tem certeza?”; “Não é só pra gestante, não?”. O rapaz então disse que seu pai disse que em outro grupo de Telegram disseram que achavam que tinha, sim. E então o povo se irritou com aquele uso exagerado de verbos repetidos e cheios de incertezas: “Você pode confirmar e dar alguma posição pra gente, Fábio?”.

Então chegou Douglas, foto do escudo do Palmeiras, e mandou a real: “O Doria tem o plano de desovar toda a Coronavac, sair como o grande salvador do país e se eleger. Então ele mandou segurar toda a Pfizer e só dar a Coronavac”. Só que o Douglas não havia percebido que tinham acabado de postar que, especificamente naquele dia, a Coronavac estava mais em falta que a Pfizer. Selma, foto de cachorro, ficou sentida: “Pessoas que trazem fake news ou teoria da conspiração deveriam ser banidas”.

Raquel, nossa guerreira que tem o carro que chama atenção em Chora Menino, apareceu algumas horas depois. Estava agora em um posto na Barra Funda: “Ai, gente, rezem por mim!”. Falou então que uma senhora passou avisando às pessoas da fila que “só iam dar mais cinco doses de Pfizer e já mudariam pra AZ” (eles se comunicam assim, como se AstraZeneca fosse o nome de um criminoso íntimo). Raquel contou as cabeças à sua frente, e eram oito desgraçadinhos. Se ela tivesse chegado alguns minutos antes com o seu carro que chama atenção, receberia, enfim, em seu bracinho, o que sua mente acreditava ser o néctar da luxúria científica em forma de privilégio. Mas deu errado, e eu já assistia àquele Telegram como a uma novela em que torcemos para que Raquel continue perambulando desesperada pela cidade em seu carro que chama atenção.

Eis que voltou Fábio dizendo que havia se enganado e que talvez tivesse Pfizer na Chácara Santo Antônio e não na Alexandre Dumas. Daí a galera foi mesmo à loucura: “Alexandre Dumas fica na Chácara Santo Antônio, cara!”; “Poxa, ele não sabe o que fala!”. Mas adivinha quem foi pra lá? Sim, a Raquel —que mais uma vez perdeu a viagem.

Vejam, antes de apontar meu dedinho julgador para o colega sommelier de vacina, preciso dizer ao leitor que tomei AZ (também vou chamá-la assim) lamentando não ser Pfizer. Temi os efeitos colaterais mesmo sabendo que medo a gente tem que ter é de ser idiota e de morrer de Covid. O posto estava completamente vazio, o que tem sido uma constante quando se oferece AZ. Cogitei se não é disso, lá no fundo, que o paulistano tem tanto medo: lugar sem fila.

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