Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Quase assunto

Precisamos recuperar a importância gigantesca dos acontecimentos ridículos e prosaicos

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A pedido da assessoria de imprensa de uma revista, faço pose para um retrato, segurando um prêmio. Minha filha se lança à minha frente com cara de “poeta angustiada que odeia exposição”. O fotógrafo e eu rimos tanto que ela se irrita e sai pisando firme: “Eu odeio vocês”. Penso que isso renderia uma crônica, mas só sai este parágrafo.

Pergunto ao meu infectologista quantos dias após a Covid posso tomar a vacina. Ele responde que o prazo já foi e que devo tomar imediatamente: “E lembre-se que toda VAGINA é boa, não fique escolhendo”. Esse é o melhor ato falho do ano. Me ocorre que o oposto não é verdadeiro. É preciso escolher um pau com muito cuidado. A maioria não presta. Penso ainda que isso renderia uma crônica, mas só sai este parágrafo.

Clairton / Adobe Stock


Três amigas me indicam O astrólogo —que é também numerólogo e tarólogo. Garantem que é o melhor de todos. Na consulta, o ilustre esotérico afirma que “viu” que ainda neste ano vou me separar e ficar com ele. Diz também que meu nome não traz muito dinheiro. Cogito Tati Bernardi Moreira Salles Setubal. Nada disso rende crônica.

Sonho que um ex-namorado surge na minha casa, bebendo com muito gosto uma garrafinha de cerveja quente, pela metade e toda babada, enquanto me oferece um gole, dizendo: “Quer ou não quer?”. Meu marido aparece e não fala nada. Sei que sou, ao mesmo tempo, a garrafinha, meu ex-namorado, meu marido e eu mesma. Não rendeu crônica.

Minha filha entra no meu quarto às três da manhã. Pergunto por que ela está parada ali, e ela responde: “Você sabe muito bem”. Retruco que não, insisto, então ela levanta as mãozinhas, como se dissesse: “Não há nada que eu possa fazer a respeito disso”, e responde: “Porque eu te amo, ué!”. Mesmo a cena mais bonita só rende este parágrafo.

Perto da minha casa tem um posto de vacinação, e a cada cinco minutos para um carro diferente ali. O motorista, sem se dar ao trabalho de sair de sua bolha quentinha, grita de dentro do automóvel: “Qual vacina é?”. E os enfermeiros respondem, compreensivelmente de saco cheio: “Contra Covid!”. Só este parágrafo.

Tudo limpo e em linha reta, já posso começar a escrever. Todos os papéis em pastas do mesmo tamanho, alinhadas. Já posso começar a escrever. Canetas de um lado, lapiseiras do outro, já posso escrever.

Derrubo o chá no teclado, chegam correspondências que ficam jogadas na mesa, abro uma multa, farelos de bolo no chão, espeto o dedão do pé numa tachinha. Assim escrevo sem poder escrever.

Escrevo com o prazo no talo, com as pessoas me cobrando, dizendo frases como: “Toda semana é esse caos, você sempre atrasa”. O que eu posso fazer se os acontecimentos do país transformaram o meu tipo de texto em coisa de outra década, outro mundo? Não rendeu nem dois parágrafos. Todos os cronistas deste jornal já registraram a dificuldade de escrever crônicas em tempos de “genocina”. Pensei que esse trocadilho (genocida com vacina, eu sei, não dá pra entender. E o que dá pra entender hoje em dia?) poderia ser bom para nomear “a operação”. Mas esse não parágrafo e essa não ideia são tão pequenos que vieram dentro de um não tema. E nada rende uma coluna.

Neste sábado, dia 3 de julho, precisamos ir para a rua tirar aquele desgraçado do poder. Então poderemos voltar a ter vida e, por isso, a ler e escrever crônicas. Recuperar a importância gigantesca dos quase assuntos, dos acontecimentos ridículos e prosaicos, dos sonhos inconvenientes e dos pequenos afetos esmagadores. Para cada fracasso em começar ou continuar um artigo, para toda a impossibilidade de narrar o absurdo, eu desejo ao menos um final decente.

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