Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu É Coisa Fina

Último livro da 'Trilogia da Paixão' tem mais anarquia e desorientação

Como em obras anteriores, estão presentes a impossibilidade de amor não violento, de saciedade ou plenitude com a maternidade

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Precoce

  • Preço 47,60
  • Autor Ariana Harwicz
  • Editora Instante (72 págs.)

Para qualquer que seja a sua pergunta ao ler “Precoce”, o último livro da “Trilogia da Paixão”, de Ariana Harwicz, não há resposta. Ela vive uma relação incestuosa com o filho adolescente? Seu amante é pai do garoto? Como ela acabou vasculhando lixo em busca de comida? Onde vive?

Sabemos que é um ambiente rural, em algum momento fala-se em Europa. Mas agora ela saiu viajando pelo mundo ou está em casa? Sua família é mesmo abastada? A escola, a polícia, a assistência social, alguém vai conseguir frear os maus-tratos impostos a um garoto abusado e apaixonado, ou é a mãe, aparentemente presa em uma infância deficitária, quem precisa de um cuidador para sobreviver?

Ela engravidou quando era menor de idade? Por isso o nome “Precoce”? Então por que a nossa impressão de que já não é jovem (“da cintura para baixo, uma, da cintura para cima, destruída, diz meu filho quando se emputece, mas com pernas magras, mas com cabelinho que ainda chega no ombro, mas com boca comestível”)? Ela é esquizofrênica, bipolar, borderline? E que outra doença lhe causa convulsões quando está no limite psicológico (ou sempre pronta a ser lançada de algum penhasco)?

Também não há um fiapo de linha narrativa que ajude o leitor na travessia da obra. Não há sequer um sentido claro em nenhum parágrafo. Agora, excitada, ciumenta, maluca, com “a idade mental do amor doentio”, ela está falando do filho, a quem implora que falte na escola (“não seja egoísta”), ou do amante casado, a quem ameaça com pedras arrebentando todos os vidros da casa?

O pequeno rebento, pedindo colo, de repente vira o jovem lutador, de cueca, que a beija na escada (“Já cheira a bode, o filho mudo”) e que tenta dar qualquer lógica a uma vida descabida, guardando em caixas numeradas objetos que pertencem à mãe: fotos, capas de revistas, colares e pares de meia-calça.

Quando resenhei para esta coluna o livro “Morra, Amor”, sobre uma puérpera que odeia a própria vida e sonha com a morte da família e sobre tantas outras coisas que não cabem nesta frase curta e simplória , consegui atravessar a literatura de Harwicz com entusiasmo e devoção. Depois, no segundo da trilogia, “A Débil Mental”, obra igualmente absurda, cortante e visceral, sobre uma filha que tenta se livrar da relação patológica com a mãe, me conectei com suas palavras, apesar de a marca registrada da autora ser o exagero do indizível.

Com o último, no entanto, confesso ter sofrido um pouco mais do que o esperado. Nos dois primeiros volumes, o caos já era uma espécie de espinha dorsal retorcida e quebrada, e nisso consistia seu charme. Mas neste “Precoce”, há tanta anarquia e desorientação que por vezes me peguei querendo desistir de chegar ao final.

Como nos livros anteriores, estão presentes a impossibilidade de um amor não violento, de saciedade ou plenitude com a maternidade, de permanecer em qualquer relação ou ambiente ditos equilibrados. Existe também a figura do amante casado que a protagonista deseja matar, arruinar ou apenas comer (ou ser comida) feito um animal no meio do mato.

Para quem aceitar o desafio, muitas frases perfeitas: “Olho as ovelhas em alta velocidade rebrilhando sobre o gelo, a lã enredada sobre suas carnes que na rapidez se tornam tule, se tornam pérolas”; “[…] igual ao coração que ele desenha com esperma na minha cara”; “Eu me sinto como um cabelo numa garrafa de álcool, à deriva, viva e morta”.

Uma desgraça parece nos esperar ao fim de cada frase. No entanto, a tensão ou o incômodo principal do livro é que nada disso importa muito. Deixar o gato morrer congelado, permitir que uma mulher seja enforcada no jardim de casa, viver um amor que parece implorar para terminar em tragédia ou largar o filho único dormindo no banco de trás de um carro sem o freio de mão puxado. Nada disso, apesar das constantes dor e urgência de cada palavra, tem tanta relevância. A verdade é que mesmo sendo o mais fraco dos três livros, ainda é escrito por uma das grandes autoras da atualidade.

“Precoce”, obra de Ariana Harwicz, publicado pela editora Instante
“Precoce”, obra de Ariana Harwicz, publicado pela editora Instante - Reprodução

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