Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu É Coisa Fina

Novo livro de Flávio Cafiero é relato inspirado e colérico pra falar de rejeição

Do romântico primeiro beijo aos violentos desejos de vingança, Cafiero gruda o leitor nas páginas

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​"Diga que não me conhece", novo romance do carioca Flavio Cafiero (que pela Todavia também lançou "Espera passar o avião"), é mais um livro de amor. E com isso quero dizer: grudei em suas palavras engenhosas, amarguradas e genuínas e segui com elas num fôlego só, até três da manhã. Saudosa de emoções grandiosas e violentas, encontrei nessas páginas um interlocutor perfeito.

Recentemente um amigo escritor me falou que eu tenho muita paciência para livros com personagens que sofrem por amor. Que ele acha infantil esse tipo de literatura. Que é o tipo da coisa pela qual todos nós passamos e que, por isso, padecer do sentimento não deveria ser suficiente para levar um autor a querer escrever um romance. E mais: disse ainda que esse tipo de narrativa não conta, por assim dizer, uma história com começo, meio e fim ou, pelo menos, não conta nada de muito original.

Meu amigo descreveu exatamente os motivos que me levam a cultuar o tema. A preguiça que eu tenho para tramas pensadas e arquitetadas para nos contar algo "diferente" (e a frieza tola e publicitária da maioria desses trabalhos) tem o tamanho da minha devoção a páginas que apenas registram, de novo e de novo e de novo, a dor terrível e universal de amar e ser rejeitado.

Sim, somos todos infantis quando nos apaixonamos romanticamente. Sim, diante do obscurantismo e dos retrocessos que estamos vivendo, perder tempo com isso parece coisa de gente sem problema. Mas como sofremos e como perdemos! Todos. Brancos, pretos, pobres, ricos, bichas, héteros, bis, órfãos, velhos, bolsonaristas (esses merecem) e até gente de cama com Covid pesada.

Livro de capa vermelha com ilustrações de contornos de prédios em preto com os dizeres "Diga que não me conhece" em branco
"Diga que não me conhece", segundo romance de Flavio Cafiero - Divulgação

Amar é a única coisa que nos faz nos sentir vivos. E consumir ou inventar livros (músicas, filmes, peças...) sobre tamanha aflição talvez seja uma das formas mais dignas e belas de sobrevivermos aos tantos desencontros.

"Diga que não me conhece" é a história de Tato, que amava Fabiano, que amava Tato, até que, depois de um ano de "perfeição", resolveu terminar tudo, chamá-lo de psicopata e começar a namorar um alemãozinho de sorriso mole e, ato contínuo, um moleque rastafári.

Tato passa então a dormir de conchinha com a depressão (e em determinado momento a trepar loucamente e a expulsar da sua frente todo homem que não é Fabiano), muda de bairro, abusa de remédios psiquiátricos e tem surtos: "as luzes estroboscópicas agarram minha retina e o samba afunda entre dois versos, eu fecho o punho, estrangulo o ar e lanço um murro contra as costas do Fabiano".

No novo prédio, no centro da cidade, o autodestrutivo Tato pode ser vigiado pela melhor amiga, Sabina, e, apesar do esmorecimento e da obsessão que não parecem dar trégua, conhece vizinhos sui generis e se interessa um pouco (e aos poucos) pela continuidade dos dias.

Dentre eles, fica amigo de Samu, um ex-viciado tão compulsivo quanto o protagonista, que o ensina a apreciar música eletrônica ("a cabeça começa a germinar e touché, você não dá corda, aumenta o volume e os impulsos elétricos dão meia-volta e rodam em piruetas sem sair do lugar") e o leva para ver bonecas sem cabeça e pais de família que praticam nudismo pelas noites quentes e solitárias da cidade.

Sobre o primeiro beijo, Tato faz um lindo relato: "Era como se uma peça tivesse sido forjada especialmente para ser conectada a outra peça, também especialmente forjada, e que uma máquina delicada e imensa dependesse desses dois componentes funcionando juntos, e essa máquina estivesse ali para erguer uma ponte e ligar os dois lados de um rio".

Mas foi nos momentos de cólera delirante ("pedi que o universo conspirasse uma tortura com sequestradores sádicos, que cortassem fora o pau do Fabiano com uma lixa de unhas, e enchessem o rabo dele com formicida") e nas descrições tão bem feitas de angústias tamanhas –inclusive físicas: "em mais um sábado de respiração forjada e asma espiritual"– que Cafiero conquistou em mim uma leitora eterna.

Diga que não me conhece

  • Preço R$ 49,90 (112 págs.)
  • Autoria Flavio Cafiero
  • Editora Todavia

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