Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu É Coisa Fina

'O Deus da Carnificina', texto atualíssimo de Reza, vomita no politicamente correto

Peça teatral da escritora e dramaturga é o tipo que a gente nunca cansa de ler ou de assistir

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Recém-lançado como livro de bolso pela charmosíssima editora Âyiné e traduzido por Mariana Delfini, "O Deus da Carnificina", peça teatral da escritora e dramaturga Yasmina Reza, é o tipo de texto atualíssimo que a gente nunca cansa de ler ou de assistir.

Em 2011, a excelente adaptação de Roman Polanski (não estou dizendo que gosto dele como ser humano) para o cinema já havia me deixado com certa veneração pelo trabalho de Yasmina. Em 2013, voltei a aplaudir entusiasmada aquele duelo verbal cheio de tensão e cinismo, então em uma impecável atuação de Julia Lemmertz.

Aprendi com a nova onda feminista a jamais chamar uma mulher de "fulano de saias", mas preciso dizer que essa obra é uma espécie de "O Mal-Estar na Civilização" de saias --e com essa referência à vestimenta em geral usada por moças quero dizer: Yasmina, por ser mulher e estar no século 21, só refilou e afiou tudo o que o pai da psicanálise brilhantemente já havia descoberto (aqui também no sentido de "descortinar").

Desenho de um coelho morto embaixo de uma poltrona em uma sala com plantas
Capa de "O Deus da Carnificina", de Yasmina Reza, da editora Âyiné - Reprodução

No reino das aparências, reforçado por uma mesinha de centro que exibe livros de arte raros e tulipas compradas para aquela ocasião, dois casais de origens sociais e culturais diferentes tentam chegar a algum acordo civilizatório depois de um confronto físico entre seus filhos adolescentes.

Véronique, a mãe do garoto de 11 anos que perdeu dois dentes na briga, é a voz mais moralista e conciliadora entre eles. É também defensora de que a cultura é fundamental para a formação dos jovens e adora dizer, de forma exibicionista e elitista, que estuda os conflitos entre os povos africanos.

O auge das alfinetadas e da crescente atmosfera de violência velada é quando Annete, mãe do garoto que meteu um pedaço de pau na cara do coleguinha, informa que está passando mal --por um lado, enojada com o marido incapaz de sair do celular e participar da conversa; por outro, farta dos discursos de superioridade travestidos de sermões de Véronique-- e vomita em cima dos livros de arte (edições esgotadas!) e da bandejinha de café da anfitriã.

De todos os personagens, o único que parece estar mais livre da luta contra si mesmo, ou seja, da mínima tentativa de parecer gentil, maduro e com senso de comunidade, é Alain, o pai do garoto violento. Em determinado momento do embate, defende que "na origem, direito é força", diz que acredita no Deus da carnificina --"o único que governa, absoluto, desde a noite dos tempos" -- e conclui que "a moral determina que nós dominemos as nossas pulsões, mas às vezes faz bem não dominá-las. Ninguém quer trepar cantando Agnus Dei [...]".

No final, quando as fraquezas já foram expostas, a bile expurgada, a arte profanada, os preconceitos aflorados, as flores destruídas, o recalcado retornado e todos já deram muitos exemplos do quanto podem ser egoístas, infantis e defensores de ideologias falsas, Annete (consigo vê-la agora naquela que é uma das melhores atuações de Kate Winslet) arremata "[...] nosso filho fez bem bater no de vocês, e quanto aos seus direitos humanos, eu limpo a minha bunda com eles!".

O Deus da Carnificina

  • Preço R$ 49,90 (156 págs.)
  • Autor Yasmina Reza
  • Editora Âyiné

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