Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tati Bernardi

O hotel

Reparei que a única coisa que me acalma é pensar que eu posso

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ao lado do prédio onde moro, há um hotel grande, quatro estrelas, com uma piscina generosa na entrada e uma promessa de champanhe na primeira noite. Eu nem bebo nada alcoólico, mas sempre encaro aquelas taças da foto sentindo uma sede ancestral.

Um dia, claramente preocupada com o conforto de um hóspede qualquer, um hóspede sem rosto e pertencente ao futuro, um hóspede que ficaria mal instalado em minha casa —posto que não tenho quarto de hóspedes—, enfim, um dia eu dei um Google no tal do hotel. Analisei os aposentos, o café da manhã, os comentários sobre a gentileza dos funcionários e a limpeza das áreas comuns.

A partir daí, como era de esperar, a publicidade do hotel passou a me perseguir em todas as redes sociais e sites de notícias. Mas o que é mais interessante, e isso a ciência do algoritmo não explica, é que eu passei a ver as fotos do local também no espelho do meu banheiro, na fronha do meu travesseiro e dentro do pote de granola.

Quarto com decoração minimalista, em tons de cinza e branco
Suíte do hotel Four Seasons, em Tóquio, Japão - Divulgação

Meu corpo anda agindo de forma curiosa. Uma vez, voltando da padaria, diminuí o ritmo ao chegar em frente ao hotel. Fiquei parada diante da porta e, no reflexo do vidro, percebi que eu estava com a mesma cara do cachorrinho do cartaz “somos pet friendly”. Um segurança perguntou se eu gostaria de entrar. Meu seio direito, que é visivelmente maior e mais atrevido que o esquerdo, já estava quase passando o cartão de crédito “apenas como garantia” e chamando o elevador. Eu disse não.

Em outra ocasião, ao voltar da farmácia, meu pé direito entortou completamente na direção do hotel, meu joelho direito praticamente se lançou para dentro do recinto, e estou há uns 15 dias colocando gelo na patela para ver se a dor melhora.

Nas manhãs em que minha filha se joga no chão para não ir à escola (todas), nas tardes em que ela esmurra infinitamente a porta do meu escritório (todas) e nas madrugadas em que me acorda pelo menos umas 14 vezes (todas), reparei que a única coisa que me acalma é pensar que eu posso. Percebam: ninguém está dizendo que eu vou. Mas eu posso fazer as malas e ir dormir sozinha, com tampões de ouvido, no quarto Premium Luxury Plus (na minha fantasia tem esse nome) do hotel que fica ao lado da minha casa. E posso mais: posso ficar lá por uns três dias, talvez três anos.

Quando meu companheiro, após um simples banho maroto, transforma aquele pequeno quadrado que outrora chamávamos de suíte do casal em um universo dizimado pela guerra, isolado pela CIA para investigação forense (é tanta roupa no chão e tantos pelos que eu sempre acho que tem mortos ali), eu penso na organização acolhedora do quarto do hotel. Tudo no lugar em que eu deixar. Linhas retas. O repouso permanente e ininterrupto dos meus objetos. O apaziguamento da individualidade.

Guardo também, em meu coração, uma modesta lista contendo uns dois ou três nomes, pessoas interessantíssimas que me atraem profundamente e que eu poderia… ninguém está dizendo que eu vou. Em suma, o hotel fazendo as vezes do meu pequeno apartamento de solteira. Da minha imensa vida que ficou para trás. Ao longo do meu dia, dentro da minha cabeça —ou, mais precisamente, dentro desse quarto de hotel que agora faz publicidade em looping dentro da minha cabeça—, eu recebo essas pessoas, ouvimos música, conversamos tanto que quase dá pra achar que a angústia tem fim, beijamos de língua por nove horas. E fazemos outras coisas.

O hotel tem outro cartaz que diz: “traga toda a família para um day use”. Semana passada, voltando da papelaria, encarei raivosa essa informação e me peguei vociferando: “NUNCA!”. Assustei uma senhorinha de cabelo roxo que passeava do outro lado da rua. Nunca! Eu não vou trazer família nenhuma aqui, nem pet nenhum, esse é o meu hotel! Esse é o meu champanhe cortesia que jamais tomarei!

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.