Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu É Coisa Fina

A lembrança viva de uma morte

Esse livro é um manifesto lindo em defesa do não superar tão rápido (ou, simplesmente, não superar)

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Lili, a mãe da escritora Noemi Jaffe, foi uma sobrevivente do Holocausto que, no ano passado, morreu de algo "besta" (um dos xingamentos preferidos da viúva, mãe de três filhas): uma infecção nos pés.

E, durante os 93 anos em que esteve por aqui, Lili resistiu a muito mais, caso da traição do irmão e de algumas primas quando estava no campo de concentração e de uma vida conjugal sem prazer. Ainda assim, Jaffe relata que ao final a mãe tinha adquirido uma doçura, "era como ser olhada por um cervo filhote", e que, apesar de muito sofrimento físico, o pior de todos para ela foi ter que se despedir da filhas em fevereiro de 2020, quando o corpo atingiu "o estado de degradação e magreza a que ele tinha chegado no campo".

Mas não é exatamente (ou somente) para dar algum contorno ao absurdo (e mãe morrer sempre será um absurdo, não importa a idade: "a morte de uma pessoa muito velha deveria ser como a morte de uma montanha ou de um totem") que a autora escreve esse livro pequeno em tamanho e gigante em beleza, dor e autoinvestigação.

Está tudo ali dentro de Noemi: a criança apavorada sem os sorrisos, abraços, beijos e cheiros maternos, e a mulher madura naturalizando os dias, superando as perdas e entregando trabalhos.

Todas as idades e possibilidades de uma filha que nunca mais vai ouvir sua mãe a chamar pelo nome, tampouco poderá dizer "mãe" e ouvir uma resposta.

E a grande pergunta que a escritora gostaria de fazer é: "Será que vou me tornar para sempre uma pessoa mais triste? Será que já sou uma pessoa triste e agora, sem minha mãe --minha fonte de alegria-- estou mais parecida com o que sou?".

Cada parágrafo é uma tentativa corajosa, apaixonada e delirante de segurar a tristeza mais tempo dentro do peito: "Lá vai a Noemi mais um buraco". De ficar com a morte da mãe mais tempo rodando nas lembranças: "Eu temo a morte da morte".

Esse livro é um manifesto lindo em defesa do não superar tão rápido (ou, simplesmente, não superar), não estar à mercê de uma mente "funcional" que sabe que precisa continuar --e isso tem que ser logo-- ou de uma memória que mais parece um "escritório burocrático onde se enfileiram prioridades". Pensar na mão que pendia inerte, no olho dentro da pálpebra que estava lá sem enxergar mais nada e no corpo sendo devorado por vermes.

Durante a reconstituição dessa relação, ou melhor, da documentação por escrito de uma adoração infinita, nos emocionamos com várias cenas tão fortes quanto delicadas, como o batom pouco usado pela mãe passado nos lábios da filha, ainda que não fosse a sua cor.

O que Noemi Jaffe parece descobrir é que "as coisas revestidas de morte são também as coisas revestidas de vida" e que seu esforço em apreender as lembranças da mãe doente ou imóvel tanto quanto as da mãe saudável que cantava e cozinhava --empenho talvez visto como um fetiche mórbido por alguns parentes mais próximos--, era somente uma elaboração vigorosa e destemida para celebrar a história completa de uma mulher e de um amor igualmente imensos.

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