Ela voltou na noite de domingo, quando eu estava sozinha em casa. Me observou enquanto eu apertava a pança inchada e mole abaixo do umbigo e pensava sorrindo, sem me convencer nem um pouco do que pregam algumas influencers do Instagram: "Eu amo esse belíssimo corpo real". Encarei a sombra e continuei: "Esse corpo real cagado pela maternidade real e pelas horas sentada trabalhando pra ser realmente rica, pois, pra mandar a real, eu aprendi a realmente amar apartamentos e a ter medo de férias quando elas se tornam reais".

Achei que a faria rir. Eu não aguento mais a palavra "real" e sou tão carente por aceitação que estava tentando fazer rir um ser que invadiu minha casa. Ela viu quando arranquei só as casquinhas da torta de palmito e quando sujei a cozinha inteira para descascar uma simples manga. Eu nunca cresci, e ela sabe disso. Tenho certeza de que dormiu comigo naquele dia, ainda que eu tenha dado uns tapas ao lado da cama e minhas mãos tenham tocado apenas o lençol gelado.

Na padaria, entrou logo depois de mim. Reparou quando eu me detive alguns segundos vendo coisas doces sobrevoadas por moscas. Até no hotel mais chique a que eu já fui na vida, o café da manhã era cheio de moscas em cima dos doces. Quando vão resolver isso? Quando vão resolver as moscas? Nunca. Não se resolvem as moscas. Essa é a descoberta da vida adulta de uma pessoa rasa. Era um sonho de infância: eu achava que, vencendo na vida, estariam para sempre resolvidas as moscas. Meu analista tem trabalhado bastante essa questão comigo —e ela não se refere às moscas.

Ontem cansei e resolvi me esconder para pegar de surpresa quem estava escondida esse tempo todo para me pegar de surpresa. E me deparei comigo mesma perseguidíssima. Sim, era isso mesmo: eu estava sendo perseguida pela minha mania de perseguição. Aonde eu ia, atrás de mim ia eu mesma falando ao telefone o dia todo, perguntando para os amigos: "Você tem um grupo paralelo com meus outros amigos pra falar mal de mim?".

Aonde eu ia, atrás de mim ia eu mesma com meu advogado, pedindo que ele checasse direitinho algum mal supostamente planejado por alguém que não conheço. A encontrei ajoelhada atrás do sofá, disparando a mensagem: "Você está estranho comigo, não está?", para 157 conhecidos, amigos e familiares. Até ao vendedor de seguro de carro a minha perseguidora perseguida pediu afeto e cobrou garantias.

Algumas pessoas têm mania de perseguição, outras, as metaneuróticas, as inceptioneuróticas, têm mania de serem perseguidas pela própria mania de perseguição.

Se fosse paranoia, há toda uma gama de remédios e tratamentos. Se fosse paranoia, está bonitinho o nome dela lá no DSM, o manual que rotula nossa angústia pra gente se sentir um ET enturmadinho delícia. Mas ainda não inventaram terapêutica para a paranoia de morar junto com uma pessoa que está paranoica que é paranoica e que, por sua vez, é você mesma —o que eu acho um atraso da medicina.

Ainda não inventaram verbete para "pessoa que é assediada moralmente por ela mesma achando que está sendo assediada moralmente". Para a minha doença, não tem página quentinha em biblioteca psiquiátrica. Para a solidão de morar com um louco que acha que está louco e que é você mesmo, não fazem séries, filmes, romances, quadrinhos.

Hoje em dia, apesar do aumento gigantesco de casos de Covid que é Covid, é muito mais comum a Covid de quem acha que está com Covid. E isso significa sintomas reais, medos reais e tomografias limpinhas. As máquinas jamais vão superar os homens.