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Luisa Mafei é culinarista e professora de cozinha a base de vegetais

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Vacas e porcos não deveriam ser comidos por seres humanos

Se as crianças conseguem chegar a essa conclusão, por que é que nós adultos não conseguimos?

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Vacas e porcos não deveriam ser comidos por seres humanos. Embora eu concorde, essa conclusão não é minha, mas de crianças de quatro a sete anos. Se as crianças têm essa percepção, não poderiam ser, desde cedo, agentes centrais do combate às mudanças climáticas?

Essa foi a questão que orientou um estudo recente publicado no Journal of Environmental Psychology pela Elsevier, uma das maiores editoras de publicações científicas do mundo. O estudo analisou o conhecimento que as crianças têm sobre a origem vegetal ou animal daquilo que comem, bem como a capacidade em identificar aquilo que é comestível e aquilo que não é.

No momento histórico em que vivemos o paradoxo entre o aumento do consumo dos produtos de origem animal e o consenso científico de que é necessário caminhar rumo a uma alimentação à base de plantas para se desacelerar a escalada do aquecimento global, as crianças aparecem como uma possível esperança de se reverter a catástrofe climática anunciada para as próximas décadas.

Ao ler o estudo, senti de imediato um incômodo: como colocar na conta das crianças a responsabilidade heroica de salvar o mundo? Como querer que elas façam a escolha que nós, adultos, não fizemos?

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Churrascaria Porco Feliz, com imagem de um animal sorrindo - Luisa Mafei

O fato de a maioria (84%) das crianças não associar vacas a comida revela mais do que uma mera desassociação entre aquilo que se come e a sua origem. É verdade que as crianças que vivem em centros urbanos não têm contato com animais criados para o consumo humano, e que, portanto, não são capazes de associar a vaca ao hambúrguer. Mas é verdade, também, que essa desassociação revela um incômodo em se alimentar de um ser vivo.

As crianças são capazes de sentir, desde cedo, certo mal-estar em comer animais quando são capazes de associar, por exemplo, o bacon a um porco que um dia teve batimentos cardíacos.

Esse mal-estar não é exclusivo das crianças, e, ao longo da vida, cada um de nós se respalda em argumentos para seguir comendo (e matando) animais. "Nós, seres humanos, estamos no topo da cadeia alimentar. Faz parte da evolução humana. Vacas, porcos, peixes, frangos e bois não sentem e não sofrem como nós, ou como nossos cachorros e gatos."

Os adultos que orientam suas escolhas alimentares por essas convicções não são pessoas necessariamente cruéis ou insensíveis aos animais. São a grande maioria, que cresceu comendo carne oriunda da exploração animal, e tratando os seus animais de estimação de forma compassiva, uma contradição central do chamado paradoxo da carne, descrito por Peter Singer em Libertação Animal (1975). Há uma tensão entre comer carne e a crença de que os animais não deveriam ser maltratados.

Os adultos dispõem de mais recursos internos para lidar com essa tensão do que as crianças, que parecem comer carne sem ter conhecimento da sua origem. Não me parece, no entanto, que elas deveriam ser vistas como uma janela de oportunidade para estabelecer nos indivíduos, desde cedo, uma alimentação centrada exclusivamente em vegetais, como o estudo sugere.

A redução do consumo dos produtos de origem animal é algo urgente não apenas para o bem-estar animal, mas para a sobrevivência da nossa própria espécie. Optar por uma alimentação 100% vegetal é a medida individual mais efetiva que podemos tomar no combate às mudanças climáticas.

Se cada adulto pudesse se conectar com a criança que foi um dia, e que se recusaria a comer um bacon que foi extraído de um porco cruelmente criado e abatido, talvez pudesse assumir a responsabilidade de fazer a parte que lhe cabe para salvar o planeta com as próprias mãos.

Uma legislação que proibisse o uso de imagens idílicas de vacas no pasto na embalagem do leite, de galinhas sorridentes nas caixas dos ovos, e de porcos felizes na entrada da churrascaria ajudaria a cortar a anestesia que nos mantém num sono profundo em relação ao sofrimento animal.

Essas imagens são, afinal, tão falsas como a do cowboy saudável que fuma um Marlboro atrás do outro, com o prejuízo do produto vendido impactar não apenas a saúde de quem come, mas a de todo o seu ecossistema.

Vacas e porcos não deveriam ser comidos por seres humanos. Se as crianças conseguem chegar a essa conclusão, por que é que nós adultos não conseguimos?

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