Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Thiago Amparo

Novas políticas de drogas em SP e Brasília deveriam garantir direito do usuário

Apesar de semelhantes, textos divergem na forma com a qual foram feitos e na questão da internação involuntária

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

18 dias. Este foi o tempo entre a sanção da lei federal na quinta-feira (5) pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) estabelecendo diretrizes para a política nacional de drogas e a aprovação da lei municipal no último dia 20 pelo prefeito de São Paulo, Bruno Covas, definindo a política municipal sobre o tema. 

Apesar da similitude temática, as novas políticas de drogas de São Paulo e Brasília divergem tanto na forma como foram feitas quanto no ponto nevrálgico de qualquer política de drogas: a primazia ou não da internação involuntária como forma de tratamento. 

Em São Paulo, a construção da política municipal foi coletiva, com a participação do legislativo e do executivo e da sociedade civil, ao passo que a política nacional foi adotada sem o diálogo democrático necessário.

As novas diretrizes sobre a política nacional de drogas —sancionada pela Lei 13.840/2019— são a versão requentada de um projeto de lei de 2013 do então deputado federal, agora ministro da Cidadania, Osmar Terra.

Tal projeto foi aprovado com espantosa rapidez pelo Legislativo, em especial diante da complexidade do tema que impacta diretamente milhares de usuários de drogas no Brasil afora e envolve crimes de drogas que representam 27% do nosso sistema penitenciário.

Na contramão, a política municipal sobre álcool e outras drogas no município de São Paulo —sancionada pela Lei 17.089/2019— foi objeto de debate por ao menos dois anos.

Em 2017, a Câmara Municipal de São Paulo, sob a presidência da vereadora Patricia Bezerra, constituiu uma subcomissão para tratar do tema, a qual em mais de um ano de funcionamento e ouviu membros do Poder Executivo, dialogou com especialistas e com organizações da sociedade civil, além de ter contado com a participação direta do Comuda (Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool do Municipal).

Tal esforço resultou em projeto de lei depois discutido diretamente com o Poder Executivo municipal até se chegar a um consenso mínimo. Em tempos de polarização, falta de respeito entre atores que pensam diferente e desprezo por evidências científicas, este é um feito por si só admirável.

Não é só na forma pela qual foi feita que as políticas de São Paulo e Brasília divergem —as políticas municipal e federal também divergem em seu conteúdo.

Política nacional aprovada por Bolsonaro privilegia a internação involuntária como forma de tratamento. Bolsonaro regula quem pode pedir internação involuntária ao permitir internação sem o consentimento do dependente, a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde ou da assistência social, sem necessidade de autorização judicial.

Na contramão da política federal, a lei municipal privilegia ao menos no papel tratamento individualizado consistente, se necessário, em planos de internação consentida e/ou redução de danos.

Apesar das diferenças formais entre as políticas municipal e federal em matéria de drogas, a realidade é mais complexa. E complexa sendo, resta pouca atenção aos direitos de quem de fato essas políticas deveriam garantir: o usuário de drogas.

São Paulo tem constantemente aplicado o uso da força, por vezes desproporcional no território conhecido como cracolândia, cena de uso de drogas (em particular crack) na região central da cidade, por meio de sua Guarda Municipal.

Ademais, após a aprovação da lei federal, São Paulo tem flertado com a possibilidade de adotar a internação involuntária de usuários de drogas da cracolândia, em contradição à sua própria política municipal recém-adotada.

Tal contradição na política de drogas de São Paulo é fruto de disputas políticas peculiares à cidade. O Flá-Flu ideológico entre programas de redução de danos vs. internação, de um lado, e a pós-verdade de que a cracolândia tenha acabado com uma ação policial truculenta em 2017, de outro, ofuscam por vezes a implementação de políticas que levem a complexidade do problema a sério, além dos slogans políticos da vez.

Nesta mesma toada, a política nacional recém-aprovada avança em alguns pontos. Faz bem a política nacional ao deixar claro que “é vedada a realização de qualquer modalidade de internação nas comunidades terapêuticas acolhedoras” —instituições muitas vezes confessionais religiosas sem respaldo em evidências médicas e, por vezes, violadoras de direitos, conforme apontam inspeções realizadas pela PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão), MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura) e CFP (Conselho Federal de Psicologia).

Fez bem também o governo ao vetar dispositivo que constava da proposta inicial segundo o qual permitia-se doação por meio do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas para manutenção de entidades de atendimento a usuários de drogas.

Esta proposta poderia aumentar a institucionalização de usuários. Não obstante, o ministro da Cidadania continua a ser um entusiasta das comunidades terapêuticas. Em março de 2019, ele assinou 216 novos contratos com tais comunidades, ao custo de R$ 153 milhões por ano. 

Resta saber se a cidade de São Paulo cederá aos encantos da política nacional pró-internação ou permanecerá como um contraexemplo onde se privilegia, ao menos em tese, tratamento individualizado e redução de danos.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.