Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Fumaça precede o apartheid climático

Enfrentar impacto ambiental em direitos humanos requer o que mais nos falta: soluções urgentes, objetivas e coletivas

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“Esse é o problema com as pessoas, seu problema de raiz. A vida corre ao lado delas, invisível. Bem aqui, do lado delas. Produzindo o solo. Renovando a água. Trocando nutrientes. Criando o clima. Compondo a atmosfera. Alimentando, curando e abrigando mais tipos de criaturas do que as pessoas podem contar.” Esse trecho é do livro "The Overstory", de Richard Powers, ganhador do Pulitzer de ficção deste ano. Nele, Powers fala da conexão humana (ou falta dela) com seu entorno natural.

Nada como um livro contado a partir da perspectiva das árvores para nos fazer pensar: por que temos dificuldade em lidar com o estado atual do desastre climático? Enfrentá-lo requer de nós o que mais nos falta: soluções urgentes, objetivas e coletivas.

Hipérboles são comuns no debate climático. Menos para expressar exagero e mais com uma forma de lidar com a realidade que se engendra sombria (literalmente, no caso da cidade de São Paulo essa semana).

Philip Alston, principal especialista das Nações Unidas sobre pobreza extrema e direitos humanos, chamou de apartheid climático o atual estado das coisas. Aquecimento será global, mas seu impacto será sentido mais fortemente por aqueles já estão em estado de vulnerabilidade. 

David Wallace-Wells, jornalista americano presente na Flip este ano, nos alerta que a terra se tornará em breve inabitável. Para ele a realidade “é pior, muito pior do que você imagina.”

Em relatório apresentado em junho desse ano em Genebra, Alston lista os impactos em direitos humanos da mudança climática de 2 graus Celsius: ao menos 100-400 milhões de pessoas passarão fome; 1-2 bilhões não terão mais acesso a água potável.

Refugiados climáticos serão uma nova constante. Em 2050, mudança climática pode deslocar 140 milhões pessoas apenas na África subsaariana, Sudeste Asiático e América Latina, argumenta o especialista.

Desastre climático nos força a encarar a realidade objetiva em um tempo de fake news. Nesta distopia, demite-se o diretor do Inpe como se isso pudesse mascarar a sangria da Amazônia.

Em um capítulo dedicado a incêndios florestais como o que presenciamos na Amazônia hoje, Wallace-Wells alerta que em 2050 "a destruição dos incêndios deve dobrar outra vez e em alguns lugares nos Estados Unidos a área atingida pode quintuplicar. Para cada grau adicional de aquecimento global, pode quadruplicar." Os incêndios de 2017 na Califórnia “acabaram com a safra de vinho do estado e varreram inúmeras propriedades”, escreve o jornalista.

Em uma sociedade centrada no indivíduo, tendemos a nos perguntar: o que podemos fazer para reverter o desastre climático? Reciclar mais? Postar fotos com a hashtag #PrayforAmazonia? Em um mundo de nacionalismos, nos parece inexorável a verdade sobre o desastre climático: trata-se de um problema coletivo que requer soluções ambiciosas. 

Em um cenário político onde parte da esquerda constrói hidrelétricas inundando terras indígenas e parte da direita libera as amarras do capitalismo selvagem, deve ser difícil compreender que ambas políticas representam retrocessos ambientais irreversíveis.

Iniciativas como o plano ambiental Green New Deal, nos EUA –com vistas a uma economia de carbono neutro até 2030–, propostas de processar judicialmente Estados e empresas pelo desastre climático e a cooperação internacional como o Fundo da Amazônia, ora desmantelado pelo governo, caminham na direção certa.

As regras internacionais de direitos humanos tampouco são hoje adequadas para lidar com o problema. Focam a responsabilização do Estado por violações a direitos individuais, ou por retrocessos em políticas sociais progressivas.

Ainda engatinham as normas internacionais sobre a responsabilidade das empresas em direitos humanos e meio ambiente –a ONU negocia um tratado sobre o tema cuja segunda versão se encontra aberta para comentários da comunidade internacional desde julho deste ano.

Adiamos o desastre climático com a arrogância de quem pensa que pode controlar a natureza. Não podemos.

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