Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Carta de amor ao Emicida

Em novo álbum, poeta profetiza amor como prática de liberdade

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Emicida nos alforria. 130 anos de uma abolição inconclusa. Que se reproduz diariamente. Emicida nos permite imaginar a liberdade. “Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei / O abutre quer te ver de algema pra dizer: Ó, num falei?!”, canta o poeta Emicida em “Ismália”, música do álbum AmarElo, lançado na última quarta-feira (30). “No fim das conta é tudo Ismália, Ismália / Quis tocar o céu, mas terminou no chão.” Irrompe em seguida a voz de Fernanda Montenegro, potente como a de uma divindade, declarando Ismália, poema por Alphonsus Guimaraens de 1923. 

“Eu sou apaixonado por canções que contam uma história que soa leve, mas que quando você para e escuta, você pensa ‘eita, porra’”, disse Emicida ao podcast Mamilos nesta semana. É a leveza das “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”, sobre as quais canta Emicida. “É um sábado de paz onde se dorme mais. O gol da virada quase que nós rebaixa. Emendar um feriado nesses litorais. Encontrar uma Tupperware que a tampa ainda encaixa.”

Ao cantá-las, Emicida expõe que a vida é feita de alegrias, também. Pensar em negros somente a partir ou de seu lugar de sofrimento ou de seu lugar de luta é nos desumanizar. Emicida nos permite ver as alegrias que tecem, delicadamente, nossos dias. “O feijão germina no algodão, a vida sempre vence”, nos conta Emicida em “A Ordem Natural das Coisas”.

Falar de amor não é diversionismo. Não é deixar de protestar.

É potência. “E quando falo de amor, não estou falando de uma resposta sentimental e fraca. Estou falando daquela força que todas as grandes religiões consideram o princípio unificador supremo da vida”, pregou em 1967 Martin Luther King Jr. ao se opor à guerra no Vietnã. Falar de amor é responder ao chamado radical de bell hooks. “Ao escolher amar, começamos a nos mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover para a liberdade, a agir de maneiras que libertem a nós mesmas/os e a outrem”, escreveu feminista negra bell hooks em “Amor como Prática de Liberdade”.

Corta para 27 de maio de 1888. Machado de Assis, ele negro, escreve uma crônica de jornal logo após a abolição: “Enquanto toda a nação bailava e cantava delirante de prazer pela grande lei da abolição, o meteorólito de Bendegó vinha andando, vagaroso, silencioso e científico, ao lado do Carvalho.”

Aqui, Machado imprime temporalidade à abolição. Decide escrever sobre a expedição, liderada pelo comandante Carvalho, para trazer da Bahia ao Rio de Janeiro o meteorito que havia caído no sertão baiano no século 18. Quarenta juntas de bois lentamente levando uma pedra espacial. Ao escolher a perspectiva pesada e lenta de um meteorito para falar da abolição, Machado – como Emicida – suspende o tempo atual e nos faz pensar sobre o andar dessa carruagem chamada Brasil.

O meteorito de Emicida é o amor. Suspende o tempo e sua violência falando de amor. O amor de Luther King, de bell hooks. Um amor que nos liberta de sermos reduzidos a seres que sofrem, apenas. “Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes. Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimes. É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir.”, escreve Emicida em “AmarElo”.

Um amor esperançoso, mas desconfiado. “Foi de mãe esse meio riso dado para esconder alegria inteira e essa fé desconfiada, pois, quando se anda descalço cada dedo olha a estrada”, escreveu em 2002 a poetisa Conceição Evaristo em “Cadernos Negros”. Um amor esperançoso, desconfiado, mas em paz. É a risada deliciosa de criança no começo da música “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida”. É “um ombro na noite quieta. Um colo pra começar o dia. Filho, abrace sua mãe. Pai, perdoe seu filho. Paz é reparação, fruto de paz. Paz não se constrói com tiro.” Obrigado, Emicida.

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