Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Descrição de chapéu

Homens, vamos falar sobre masculinidade tóxica

Misoginia presidencial e alta de feminicídios são faces da mesma moeda, de uma masculinidade violenta

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Era um outro 24 de fevereiro. De 1932. Nesta data, publicara-se o novo Código Eleitoral, assegurando às mulheres, pela primeira vez no Brasil, o direito ao voto. Como a história nos entrega igualdade quase sempre cindida, as mulheres a que se referia o Código tinham um marcador racial e de classe, uma vez que a mesma lei impedia, expressamente, que mendigos e analfabetos se alistassem como eleitores.

Codinome para assegurar a perpetuação da desigualdade contra mulheres negras e periféricas.

No mesmo ano, nosso pequenino fascismo pau-brasil nascera: criara-se a Ação Integralista Brasileira (AIB). Dois anos depois, em São Paulo, 40 mil integralistas desfilaram nas ruas da cidade. No Rio de Janeiro, o mesmo. Em 1937, integralistas contavam com entre 100 mil e 200 mil adeptos num país de 40 milhões de pessoas, relatam as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling. Antes e hoje, fascismo nasce e se nutre de um sentimento de ameaça ao poder masculino.

Chega ser patético, se trágico já não fora, quão fragilizada, quão mimimi soa a masculinidade quando confrontada.

Close de Jair Bolsonaro, de terno preto, sorrindo com os dentes à mostra, os ombros para trás e uma caneta na mão erguida
O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de lançamento do programa "Médicos pelo Brasil" - Pedro Ladeira-1º.ago.19/Folhapress

Quão constrangedoramente fálico é o símbolo de uma arma de fogo com a mão, usada para esconder no culto à violência o medo de viver em um mundo onde sua palavra não seja a última, ou sua verdade, a única. Um presidente da República, quando confrontado, torna-se diante de sua plateia, que tudo aplaude, o aluno valentão de 10 anos de idade que nunca deixou de ser. Frágil porque inseguro, e violento porque misógino.

Opressões são relacionais. Explico: não existe racismo sem que haja branquitude, tal como não existe misoginia sem que haja masculinidade tóxica.

Sem encarar o papel de uma masculinidade tóxica, a violência persistirá. A física, a psicológica, a digital, a patrimonial, a simbólica, a sexual e a política. É neste espaço deixado por nosso silêncio sobre masculinidade onde se engendra a alta histórica de feminicídios verificada em 2019. No ano passado, 1.310 mulheres foram mortas por serem mulheres.

Para desconstruir violência é necessário desmantelar as estruturas masculinas que a permitem. Passa, primeiro, por dar nome a essas violências e processá-las como tais.

Pesquisa do Instituto Avon nas universidades em 2015 mostrou que apenas 10% das alunas relatam (espontaneamente) ter sofrido violência no meio universitário. Quando confrontadas com uma lista de diversos tipos de violência, esse número sobe para 67%.

Apenas 2% dos homens universitários reconhecem espontaneamente tais violências. Combater violência de gênero, seja ela qual for, pressupõe que as instituições responsáveis por punir quem a perpetua, de um lado, e acolher as mulheres, de outro, funcionem. Pressupõe investigar criminalmente o presidente da república por eventual crime, no exercício de sua função, contra a honra de uma jornalista.

Desmantelar violências passa também por questionar por que nos silenciamos, enquanto homens, diante delas.

Olhe à sua volta, e pense quantas vezes silenciou uma mulher em uma reunião ou deixou de reconhecê-la? Quantas vezes perguntamos para mulheres como elas, “que não seguem todos os padrões físicos de beleza”, chegaram a certa posição de poder —como Folha fez com a cantora Lizzo— e estas mulheres precisam usar do humor para lidar com o questionamento que, raramente, é feito a homens?

Masculinidade não é algo dado pela essência de ser homem. É construída socialmente. Construído no espaço de poder habitado por homens que praticam misoginia, a aplaudem ou se silenciam diante dela. Desmantelá-la passa, inclusive, por conversar entre homens sobre por que masculinidade violenta é hegemônica.

Aproveitemos que é Carnaval para lembrar de Lélia González. “Carnaval. Rio de Janeiro, Brasil. As palavras de ordem de sempre: Bebida, Mulher e Samba. Todo mundo obedece e cumpre”, escreve no ensaio “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” (1984). Momento ápice do rito carnavalesco que violentamente coloca a mulher, em especial a mulher negra, na condição de objeto, e não na condição de dona de seu corpo. O ápice de uma cultura que vemos nos demais dias, do Palácio da Alvorada à rede social mais próxima.

Como chegamos a este estado de coisas? É Lélia que, de novo, nos dá a resposta: “Pelo visto, e respondendo à pergunta que a gente fez mais atrás, parece que a gente ‘não chegou’ a esse estado de coisas. O que parece é que a gente nunca saiu dele.”

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