Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Sem pessoas LGBTs e negras não haveria democracia

Moralismo e democracia racial sustentaram ditadura; democracia requer rejeitar tais ideologias

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As histórias que contamos a nós mesmos sobre ditadura e seu fim determinam quem hoje incluímos em nossa democracia. Ditadura não fora somente um regime repressivo. Fora um regime repressivo a serviço das ideologias que o sustentara. Passado mais-que-perfeito, usado aqui, é mais pensamento positivo do que realidade. Moralismo e racismo ainda sustentam autoritarismo nada gradual a que LGBTs, negros e negras são submetidos diariamente. Moralismo e democracia racial não são meros subprodutos da ditadura; são as bases ideológicas que a sustentaram.

As marcas dos porões da ditadura persistem hoje nas peles negras e LGBTs daqueles e daquelas que ainda ousam reencenar o ato revolucionário de existir e amar. São as Marielles Franco, as Dandaras dos Santos que reivindicam que a nossa democracia não seja uma farsa; que democracia seja uma luta constante que não se concretizou em 1985.

Falemos da histografia de nossa luta democrática. Onde localizamos negros e negras, LGBTs nas histórias que contamos sobre como nossa democracia aqui chegou? No filme que contamos sobre nossa democratização onde estão os milhares de negros e negras que lotaram as escadarias do Theatro Municipal de São Paulo em 7 de junho de 1978, no ato histórico do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial? Abdias do Nascimento lembra que “o ato público nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo foi um momento inesquecível ainda em pleno regime militar”.

Por que não colocamos como um dos atos fundadores de nossa democracia as manifestações em diversas cidades brasileiras no centenário da abolição inconclusa, em 1988? Lembra Flavio Rios que “nessa investida agressiva contra o 13 de Maio, o movimento não sepultava apenas uma data comemorativa alusiva à liberdade dos negros: introduzia-se na cena histórica um novo marco reivindicatório, que tinha em seu horizonte o igualitarismo.”

Reduzir negros e negras a corpos que morrem em massa numa democracia imperfeita significa apagar que estes estavam ali e estão hoje aqui rejeitando a ideologia de uma democracia racial para que possamos construir uma democracia real.

Onde estão em nossa historiografia as centenas de LGBTs que foram presos e presas nas rondas policiais comandadas por José Wilson Richetti, chefe da Seccional da Polícia da Zona Central de SP nos anos 1980? Onde estão as mulheres lésbicas que denunciaram Operação Sapatão, estruturada por Richetti segundo a Comissão da Verdade de SP, e que fizeram em 1983 nosso Stonewall no Ferro’s bar? No que Renan Quinalha chamou de “ditadura hetero-militar”, moralismo e democracia racial serviram de bases centrais da ideologia ditatorial. Onde em nossa historiografia ​estão os protestos de 14 de julho de 1980, nos quais faixas onde se lia “Libertem as Travestis!” ocupavam as ruas ao lado das faixas “Contra Discriminação Racial”?

Gênero intersecciona todas estas opressões. Democratização não é possível sem que seja contada a opressão moralista contra mulheres como um dos pilares da ditadura. Quinalha lembra a frase de Cid Furtado, deputado arenista, que resumiu em 1975 a política sexual da ditadura, ao se opor à legalização do divórcio: "desenvolvimento e segurança nacional não se estruturam apenas com tratores, laboratórios ou canhões. Por detrás de tudo isso está a família, una, solidária, compacta, santuário onde pai, mãe e filhos plasmam o caráter da nacionalidade.”

Se o lugar que reservamos a mulheres, negros (as) e LGBTs na democratização for ou de heróis num passado distante, ou de vítimas num presente desigual, estaremos privando-lhes do sangue com que eles e elas engendraram nossas liberdades.

Sobre isso, nos conta Lélia González no texto “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” de 1980. Ao lembrar a história de “uma mulher negra, de uns 27 anos, Marli Pereira da Silva, que, em plena ditadura, resolvera enfrentar os grupos de extermínio para afirmar que seu irmão fora assassinado”, Lélia nos lembra da tática de heroicizar-nos para apagar as lutas coletivas. Diz: “nada melhor para neutralizar a culpabilidade despertada pelo seu ato do que o gesto de folclorizá-la, de transformá-la numa ‘Antógina Negra’, na heroína, única e inigualável. Com isso a massa anônima das Arlis é esquecida, recalcada. E tudo continua igual nesse país tropical.”

Maior prova de que autoritarismo persiste hoje é a constatação de que suas bases moralistas e racistas ainda persistem. Não haverá democracia sem que desmantelemos estas bases todos os dias. Não se trata apenas de conquistar direitos em nossa democracia, mas sim do reconhecimento de que democracia só existe porque lutamos para que nela caibamos todos e todas como iguais.

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