Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Descrição de chapéu Coronavírus

E se Queiroz fosse polonês?

Quando voa muito perto da política, Judiciário mata a democracia; na Polônia e aqui

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Nem sempre o golpe que mata a democracia se dá com estrondo. Autocracia bolsonarista chega a ser vintage, neste sentido. Apenas alguns militares de pijama —em casa e no Palácio do Planalto— sonham com canhões empunhando armas. Outros autocratas (os delicados) sonham em ser o poder moderador da república. Canais de TV fazem painéis sobre o tema. Debate ficou em algum momento entre a constituição de 1891 e os canhões de 1964.

O golpe que hoje mata a democracia é, ao contrário, um vírus silencioso que corrói as estranhas do poder: o desmantelamento do poder judiciário, por dentro. Polônia, que agora elege um novo presidente, e o Brasil estão aí para nos mostrar.

Enquanto escrevo este texto, boca de urna na Polônia indica provável vitória do presidente de ultradireita polonês. O que diferencia a história polonesa da húngara é que naquela, diferente desta, autoritarismo se consolidou, principalmente, por meio de mudanças legais infraconstitucionais para tomada do Judiciário. Morte mais silenciosa que um canhão, mas dolorosa.

Partido no poder por lá, próximo de figuras como Trump e Bolsonaro, adota desde 2015 reformas judiciais que mudam regras disciplinares e de nomeação para calar juízes. Autocratas não gostam de quem os contrarie. Por isso, controlar a corte constitucional na Polônia foi a primeira medida rumo à morte da democracia. Não tinham por lá um ministro da educação vintage para sugerir prisão de ministros do Supremo. Pequena sorte deles, azar o nosso.

Corrói-se a democracia por dentro quando, primeiro, instituições de justiça se instrumentalizam para agradar o rei e seus ladrões. No momento em que não se puder mais escrever o que quiser nos jornais sem que ministro de justiça aja como defensor da honra ferida do seu chefe, estaremos perdidos.

Enquanto o presidente fala as barbáries que quer, sem muito se preocupar com a sua honra, e o procurador-geral dorme em berço esplêndido, instituições de Justiça não servem mais como base de sustentação da democracia.

Quando voa muito perto da política, Judiciário mata a democracia; na Polónia e aqui. E, ao fazê-lo, seletivo será o Judiciário. Seletividade, diga-se, é a cloroquina do Judiciário. Tome e finja que está tudo certo. O problema não é Queiroz ter ido para a casa, problema é termos milhares de presos e presas nas mesmas condições morrendo de Covid-19 no cárcere. Problema é a hipocrisia judicial revestida de seletividade.

Como diria o excelentíssimo Eduardo Bolsonaro, lá nos idos de 2017: "Ladrão de galinha ir para a cadeia e ladrão amigo do rei para prisão domiciliar (leia-se mansão) é sinônimo de impunidade. Infelizmente juízes se utilizam de brechas nas leis para favorecer alguns.” Problema é que, agora, o rei é outro, os ladrões idem, mas o ladrão de galinha continua preso. E nós continuamos os bobos da corte.

Nos corredores da Justiça, seletividade se pratica de forma mansa, cheia de boas intenções. Enquanto CNJ adota recomendações para conter a transmissão de doença nos presídios, sugerindo a soltura de presos e presas por crimes não violentos e pertencentes aos grupos de risco, STF finge que não é bem com ele.

Concedeu apenas 6% do total de habeas corpus de março a maio, após o plenário rejeitar que as medidas do CNJ fossem implementadas em todo o país. Mantém preso jovem por furto de xampu, e rejeita pedido para que mães e gestantes presas possam ir para a casa em regime domiciliar.

Só aparenta ser disruptivo o HC coletivo em prol de todos os presos de grupo de risco da Covid-19, impetrado na última sexta (10), porque nos acostumamos com uma normalidade judicial da barbárie seletiva. HC coletivo é a chance para que o STJ afirme seu papel independente em nossa democracia que, como a Polônia, respira por aparelhos.

E se Queiroz fosse polonês? Estaria, como está, em casa, com a mulher antes foragida. Nós e o jovem que furtou um xampu é que não estamos livres. Com o Supremo, com tudo.

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