Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Não dá para cancelar o Datafolha

Diante de autocratas populares é preciso navegar as contradições e explorar fissuras

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Risível seria, se já não fosse trágico o bastante. Entre os que habitam minha bolha algorítmica progressista, as reações aos números do Datafolha variaram, com raras exceções, entre incredulidade (“por que 47% da população não vê o genocídio em curso?”), passando pelo paternalismo elitista (“será que deveríamos ter aprovado a renda básica emergencial?”), pousando por fim no fatalismo (“Bolsonaro ganhará em 2022”). Mesmo sendo reações sinceras e até bem-intencionadas (devem ser), não é por isso que sejam menos simplistas, algumas, e perigosas, outras (porque o são).

Se quisermos vencer Bolsonaro e, mais ainda, o bolsonarismo ao qual ele dá corpo, é preciso navegar contradições políticas, diminuir nossa performance individualista de superioridade epistêmica, e assumirmos que a luta política recai em trabalhar, coletivamente, na construção de consensos dentro das fissuras que o bolsonarismo deixa abertas.

O presidente Jair Bolsonaro é recepcionado por apoiadores na chegada da cidade de São Raimundo Nonato, no Piauí - Yala Sena - 30.jul.2020/Folhapress

O Datafolha sugere algumas fissuras do bolsonarismo, para as quais devemos ficar atentos. Com as ressalvas de se tratar de uma pesquisa por telefone e considerando a margem de erro, permanece alta a rejeição de Bolsonaro entre estudantes, entre quem tem ensino superior e, ainda mais, entre quem ganha de cinco a a dez salários mínimos. Bolsonaro é considerado ruim e péssimo, em especial, entre pretos e mulheres.

Tão logo a pandemia possibilitar protestos em massa, são estes grupos que poderão sair às ruas, porque estes possuem alguns dos elementos necessários para tanto, entre eles repertório de protesto (vide mobilizações suprapartidárias pró-educação), conexões com redes já mobilizadas (vide movimentos de mulheres e negros), e recursos econômicos. Sobre pandemia, a fissura está na maioria que vê com apreensão a volta às aulas e na metade que culpa, ao menos em parte, Bolsonaro pelos efeitos da crise sanitária. Debates sobre cidades nas eleições municipais também fornecem uma estrutura de oportunidade para mobilização.

Para que a fissura seja mais ampla do que isso, é necessário navegar por contradições e evitar reducionismos paternalistas. Pobres não são seres que precisam ser educados para entender a gravidade do risco da democracia, tampouco periferias são lugares que precisam ser ocupadas por progressistas que queiram fazer trabalho de base, como se ali já não houvesse. Não ajuda quando evangélicos são vistos como corpos monolíticos alinhados ao campo hegemônico de líderes televisionados.

Para reconquistar assalariados sem registro, quem ganha até dois salários e desempregados, o campo progressista precisa, de um lado, reivindicar para si e contra a dupla Bolsonaro-Guedes a propositura de políticas sociais universais (inclusive de renda e pela revogação do teto de gastos), e, de outro, reconhecer que o processo de inclusão pelo consumo não é invenção do bolsonarismo, mas do lulismo, como mostram as pesquisas de Rosana Pinheiro de Machado.

Isto será feito por meio do pragmatismo político. Adapto a expressão “navegar as contradições” da fala da professora e teórica feminista Angela Davis. Quando perguntada sobre a escolha da senadora Kamala Harris para concorrer pelo Partido Democrata à vice-presidência dos EUA, Davis lembrou o histórico no mínimo complicado de Harris como promotora, mas acabou por dizer: “É uma abordagem feminista ser capaz de trabalhar com essas contradições.”

Breaking news: autoritários podem ser, por um tempo, populares. O problema é quando chegamos ao ponto de não sabermos mais diferenciar popularidade de falta de dissenso, vide Hungria. Se suspendermos nossas certezas políticas encasteladas em caracteres, veremos um futuro através das fissuras que tornam o bolsonarismo assustador e perigoso, mas antes de tudo frágil e, portanto, vencível.

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