Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Descrição de chapéu Folhajus

Retórica pró-vida, prática pró-morte

Ao dificultar aborto legal, governo federal mimetiza retrocessos dos EUA

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Nesta sexta (28), o general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, imaginou ser a pandemia um bom momento para editar portaria que cria obstáculos para que mulheres possam interromper gravidez nos três casos já previstos em lei: estupro, risco à vida da mulher ou feto anencefálico.

Além de desumano, o ato do ministro da Saúde é ilegal: portarias devem buscar o fiel cumprimento da lei, não impor empecilhos nela não previstos.

A portaria tem o único objetivo de humilhar mulheres que busquem o direito de aborto. Obriga que profissionais de saúde notifiquem a polícia em caso de estupro, o que torna hospitais delegacias de polícia. Exige que a gestante relate detalhes sobre a violência a dois profissionais de saúde, reencenando-a. Versa sobre a possibilidade de ultrassonografia, o que pode vir a ser usado como violência emocional.

Enquanto abortos seguros são praticados todos os dias por quem pode pagá-los, mulheres negras e pobres morrem quase duas vezes mais por abortos inseguros. Num país em que aborto legal é negado em 57% dos hospitais indicados pelo próprio governo por meio de exigências que a lei não demanda, como boletim de ocorrência ou sentença judicial, retórica pró-vida significa, pura e simplesmente, morte de mulheres negras e pobres.

Ao editar portaria antiaborto, o ministro copia e cola tática já vista nos EUA: ignora conquistas históricas naquele país e se mira em retrocessos como do Alabama, estado sulista onde em 2019 legisladores —todos homens, brancos e republicanos— criminalizaram interrupção da gravidez, mesmo em caso de estupro, com pena de até 99 anos, em desafio ao direito ao aborto garantido em Roe v. Wade desde 1973 pela Suprema Corte. Esta, aliás, tem sido ambivalente quanto a restrições ao aborto, mas o apoia como precedente.

Manifestantes protestam contra a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) por sua posição sobre o aborto da criança que engravidou após ser estuprada pelo tio - Pedro Ladeira - 20.ago/Folhapress

Cínica, a portaria do Ministério da Saúde finge ser apenas uma regulação inofensiva, quando na prática procura impedir o aborto legal. Nos EUA, isto tem sido feito por uma série de leis estaduais que impõem restrições à cobertura do procedimento em planos de saúde, criminalizam profissionais, restringem abortos em alguns semestres de gestação a despeito do risco à vida da mulher e exigem ultrassom e aconselhamentos enviesados.

Na América Latina, a batalha tem se dado muitas vezes no âmbito das objeções de consciência. Chile, Argentina e Colômbia são exemplos de onde o artifício já foi usado por médicos para não praticar aborto. O Conselho Federal de Medicina regulou em 2019 o tema, hoje em disputa judicial. A própria norma, aliás, impede objeção em casos de dano à saúde da paciente, cabendo medidas disciplinares contra profissionais.

O que Damares e Pazuello defendem não é a vida, é a sua própria retórica de superioridade moral construída sobre corpos de mulheres que, se não fossem criminalizadas, não morreriam em grau estarrecedor por abortos inseguros.

Em 2007 Portugal aprovou a descriminalização do aborto e, desde 2011, o país conseguiu zerar a mortalidade materna em decorrência da interrupção da gravidez e, na verdade, vê queda no número de procedimentos realizados. Minoria entre os procedimentos, os abortos tardios utilizados pela direita como retórica emotiva antiaborto são motivados pela criminalização do aborto, e não por sua permissão, a qual, se houvesse, propiciaria opções de saúde desde o início da gestação.

Enquanto generais regem sobre os corpos de mulheres, vemos a marcha da insensatez passar: estados e municípios não disponibilizam acesso ao aborto legal, o STF engaveta caso sobre o tema, projetos de lei antiaborto abundam no Congresso Nacional, Damares corta pela metade recursos para proteger crianças e adolescentes contra a violência sexual, tudo em nome da vida.

Descriminalizar aborto é medida pró-vida, restringi-lo é prática pró-morte. Mortes pretas e pobres.​

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