Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Descrição de chapéu Folhajus Governo Trump

Com o futuro da Suprema Corte em xeque, juíza deixa legado de justiça em tempos sombrios

Ruth Bader Ginsburg, que faleceu sexta, ensina que a lei pode ser transformadora

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Pergunta um antigo exercício filosófico: se uma árvore cai numa floresta, e não há ninguém para escutá-la caindo, a árvore faz barulho ao cair? Quando uma jurista de estatura altaneira como Ruth Bader Ginsburg (RBG, como era conhecida) nos deixa, conseguiremos ouvir sua partida e tudo o que ela significa? Não por falta de ruído, mas por seu excesso. A dois meses das eleições nos Estados Unidos, podemos nos perder nos ruídos (uns democráticos, outros nem tanto) que, compreensivelmente, o pleito produz.

Uns a chamarão de anti-Trump, em desrespeito a uma jurista que dedicou sua vida para não ter suas conquistas medidas pela régua de homens. Outros usarão sua morte como trampolim para, enfim, conquistar a Suprema Corte para o neoconservadorismo que tem corroído, uma a uma, as conquistas de direitos civis.

Se silenciarmos os ruídos políticos por um segundo, o que resta é o legado de Ginsburg por um radicalismo pragmático: a jurisprudência de Ginsburg desnuda as inequidades que a lei esconde para transformá-la em instrumento por justiça.

Até parece outro mundo, e talvez o seja mesmo, mas lembremos que, em 3 de agosto de 1993, Ruth Bader Ginsburg fora confirmada pelo Senado dos EUA como a segunda juíza mulher na história da Suprema Corte do país, com apenas 3 votos contrários e 96 favoráveis.

Durante o processo de confirmação no Senado presidido pelo então senador, hoje candidato à Presidência, Joe Biden, Ginsburg defendeu o direito de mulheres ao aborto: “Quando o governo controla essa decisão pela mulher, ela está sendo tratada como menos do que um adulto completamente responsável por suas próprias escolhas”. É como se os presidentes brasileiros que antecederam Bolsonaro tivessem tido a coragem de nomear juristas feministas para o STF, como Deborah Duprat, Debora Diniz ou Thula Pires. Não tiveram.

De baixa estatura e semblante sério, RBG era uma força jurídica potente. Em sua primeira aparição perante a Suprema Corte dos EUA, em 1973, como advogada de uma oficial da Força Aérea americana que reivindicava igualdade de benefício em relação aos seus colegas militares, Ginsburg deixou a corte em silêncio. Nos EUA, não é permitido filmar as audiências da Corte, apenas gravar seu áudio. Nele percebemos que Ginsburg não é interrompida pelos juízes em momento algum durante sua sustentação oral, o que não era comum. Estavam deslumbrados por sua grandeza.

Diante de uma corte composta de 9 homens brancos de meia idade, a jovem Ginsburg concluiu seus argumentos citando a abolicionista Sara Grimke: “Não peço nenhum favor para o meu sexo. Tudo que peço a nossos irmãos é que tirem os pés de nossos pescoços.” Ganhou o caso, mas não o reconhecimento, por parte da Corte, de que discriminação de gênero exigiria escrutínio constitucional. Isso viria depois, com uma estratégia pela qual Ginsburg ficaria famosa: utilizar casos em que homens foram discriminados com base no gênero, para depois citar estes precedentes em casos a favor de direitos das mulheres. Deu certo.

Sobre obstinação RBG sabia muito. Quando ingressou na faculdade de direito de Harvard, em 1956, Ginsburg era uma das nove mulheres numa turma com 552 homens. No mesmo ano, a primeira mulher negra a ingressar em Harvard, Lila Fenwick, se formaria. Fenwick também faleceu neste ano, em abril, vítima do coronavírus. Harvard passou a admitir mulheres somente a partir de sua turma de 1953 e apenas na presente década obteve paridade de gênero. No jantar com o diretor da faculdade de direito, logo após serem admitidas, Ginsburg e suas colegas tiveram que se levantar, uma a uma, e responder a seguinte pergunta: “Por que acha que merece tomar o lugar de um homem na faculdade?”.

Como jurista, Ginsburg nos deixará dois legados imprescindíveis para os atuais tempos obscuros: um senso de justiça inclusivo e franqueza sobre as injustiças da lei. Como advogada e como juíza, Ginsburg lapidou suas palavras como um diamante, não para ornamentar a lei, mas para usá-la como estaca contra as injustiças que a lei ainda permitia.

“Meu conselho [aos mais jovens] é que lutem pelas coisas com as quais vocês se preocupam. Mas façam isso de uma forma que leve outros a se juntarem a vocês”, disse, certa vez, Ginsburg. Sua visão do direito era inclusiva. Ginsburg escreveu em 1996 a decisão da Suprema Corte que declarou inconstitucional por 7 a 1 que escolas militares apenas aceitassem homens. Diante da oposição à decisão, Ginsburg disse “espere e veja”. Anos depois, foi recepcionada com aplausos de pé na já integrada escola militar que desagregara por meio de sua decisão na Virginia.

Claro que suas conquistas na corte estavam intimamente ligadas às batalhas sociais nas ruas. Ginsburg lutou na corte pelo casamento LGBT, contra violência policial, pela manutenção de ação afirmativa para negros, batalhas que ocorriam também nas ruas. Ao fazê-lo, Ginsburg tinha como filosofia buscar o consenso, sem perder o radicalismo das ideias, uma arte magistral que nos falta na política e no direito.

Em sua confirmação como juíza da Suprema Corte em 1993, o líder republicano à época, senador Orrin Hatch, disse ao final da audiência: “Não concordo com você em muitas coisas e tenho certeza que não concorda comigo. Mas essa não é a questão, não é? Francamente, eu te admiro. Você ganhou o direito, em minha opinião, de estar na Suprema Corte.” Delicadezas políticas raras hoje em dia.

Ginsburg tinha como qualidade adicional a franqueza de palavras, outro atributo difícil de encontrar na linguagem labiríntica dos juristas. Descartar mecanismos eficazes para combater discriminação racial no direito ao voto, escreveu Ginsburg em 2013, “é como jogar fora seu guarda-chuva em uma tempestade porque você não está se molhando”. Impedir casamento LGBT sob o argumento de que o casamento não deve mudar, disse Ginsburg em 2015, ignora que casamento foi por muito tempo uma união entre um homem dominante e uma mulher subordinada; se isso mudou, casamento LGBT pode ser reconhecido.

Nos próximos dias, batalhas políticas seguirão para que seja preenchida a vaga ocupada por Ginsburg. Faz parte do processo democrático, e é o que nos aguarda em pouco tempo com as nomeações a serem feitas pelo presidente Bolsonaro ao STF (Supremo Tribunal Federal).

O legado de Ginsburg transcende batalhas políticas. Não porque o direito seja separado da política; não é. Mas porque sua franqueza frente às injustiças e seu radicalismo voltado ao consenso permanecerão como uma força moral a nos dizer que a constituição, sim, se inclina para a justiça. Isto, claro, se nos importarmos em tirar os pés dos pescoços que queremos silenciar.

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