Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Descrição de chapéu Folhajus

EUA, uma democracia suprimida em ebulição

País decide entre Trump e Biden sob o peso de uma história de supressão da democracia; aprofundar esta história ou revertê-la é o que está em jogo no pleito de 2020

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Com qual rosto a democracia nos retribui o olhar quando contamos as histórias que em geral são silenciadas? Qual a feição da grande democracia pelos olhos da mulher negra esperando horas em uma fila de votação na Geórgia? Um eleitor de 71 anos nesse estado sulista disse à rádio NPR estar “preparado para ficar de pé por oito horas se for necessário.” Alguns têm ficado.

Longas filas para votar antes do dia da eleição são, em parte, em decorrência do medo de que os votos não sejam contabilizados. Não é para menos. Em 2016, Stacey Abrams, candidata negra ao cargo de governadora, perdeu a eleição por 60 mil votos num pleito marcado pela supressão de votos. Neste ano, desde o início da votação antecipada, tem havido um aumento de 110% na votação em relação ao pleito de 2016, com 2,7 milhões de votos já depositados segundo dados oficiais do último dia 24.

Supressão de voto não é uma novidade. A centenária ONG American Civil Liberties Union (ACLU) tem questionado perante as cortes uma série de restrições voltadas a suprimir voto em especial de negros e latinos, que variam de estado para estado. Entre elas podem ser citadas: restrição em alguns estados sobre quem pode votar por correio; exigência de testemunha; leis restritivas quanto aos documentos aceitos, inclusive prova de cidadania; desenho arbitrário de mapas de distritos eleitorais; e retirada de nomes das listas de eleitores por questões burocráticas; desinformação sistemática sobre locais e formas de votação, entre outras medidas.

Ilustração de Donald Trump e Joe Biden frente a frente. O fundo é composto por vários elementos referentes a cada um, o lado de Trump é vermelho e o de Biden é azul. Elementos de Trump: muro, notas de dinheiro, bandeira da China, seus filhos, a Casa Branca e um cinegrafista com sua câmera. Elementos de Biden: picolé, bola de futebol americano, o Capitólio dos Estados Unidos, Barack Obama, carros antigos e um trem
Donald Trump e Joe Biden - Luciano Veronezi/Folhapress

A festa da democracia nos EUA parece uma festa bem desorganizada, não por acaso: trata-se de um sistema historicamente construído para dificultar a participação popular. Apesar de existir uma lei federal, regras variam de estado a estado, não há um sistema único de votação eletrônica ou mesmo um título de eleitor nacional.

Desde o início do voto este ano, a Suprema Corte tem decidido uma série de casos em procedimento de urgência, quase sempre apoiando restrições ao voto no âmbito estadual, e invariavelmente sem base legal sólida, concluiu o professor de Harvard Nicholas Stephanopoulos no Washington Post no último dia 29.

Em parte, esse sistema bagunçado que envergonha a democracia dos EUA foi agravado por uma decisão da Suprema Corte dos EUA de 2013, no caso Shelby County sobre a Lei de Direitos Eleitorais de 1965. Aqui, a Suprema Corte derrubou parte do sistema de supervisão federal da discriminação racial no voto. “Nosso país mudou”, escreveu a maioria conservadora. Logo em seguida, estados governados por republicanos adotaram medidas cujo impacto foi dificultar voto, em especial de negros e latinos.

Jogar fora o sistema de supervisão contra discriminação no voto porque ele funciona, escreveu a juíza Ginsburg em seu voto dissidente, era como “jogar fora seu guarda-chuva em uma tempestade porque você não está se molhando.” Continua chovendo mais forte e estamos sem guarda-chuva.

EUA não foram desenhados para serem uma democracia, mas sim uma república. Seja pela arquitetura constitucional de seus fundadores voltada a erguer um sistema representativo à prova da tomada do poder por facções (majoritárias ou não), seja pelo sistema eleitoral indireto por um colégio eleitoral resultado de um compromisso político com estados sulistas onde seus escravos contariam como três-quintos de uma pessoa livre, o que marca os EUA são uma luta constante por mais democracia lado a lado a uma história de supressão desta mesma democracia.

Nesse sentido, escreveu Jamelle Bouie, no New York Times, Trump não é uma exceção à história americana, mas um ponto de exclamação —hipérbole que é— em uma narrativa antiga. Democracia nos EUA é um pacto narcísico, mas irreal do sonho americano.

Lembro do escritor norte-americano Ta-Nehisi Coates, herdeiro intelectual de James Baldwin, e seu belíssimo livro “A Dança da Água”, publicado no Brasil este ano.

Coates nos lembra o “incrível poder” libertador que a memória histórica carrega. Memória, ele escreve, é “capaz de abrir uma porta azul de um mundo para o outro, capaz de nos transportar de montanhas para vales, de florestas verdes para campos cobertos de neve, sabendo que a memória pode dobrar a terra como um pano, (...) agora sei que essa história, essa Condução, tinha que começar ali naquela ponte fantástica entre a terra dos vivos e a terra dos perdidos.”

O pleito nos EUA não é apenas entre Trump e Biden; é entre quais pontes construiremos: entre um sistema democrático onde a vontade popular tenha voz, ou o maior encastelamento da vontade popular em instrumentos voltados a suprimi-la. Direitos civis, as (poucas) políticas sociais e voto para mulheres só foram possíveis quando as pessoas nos EUA puderam expressar sua voz. Se de fato serão as mulheres brancas dos subúrbios que ajudarão a decidir a eleição dos EUA, tampouco aqui a história deixa de ser menos brutal. EUA convivem historicamente com um sistema de segregação racial na habitação e subúrbios mais diversos contribuem para a mudança dos ventos políticos.

Nos EUA, democracia, ora suprimida, acordando está, e é preciso ter memória para enxergar o futuro e ver as pontes necessárias para atravessá-lo.

Em 1947, pensador W.E.B Du Bouis e a organização de direitos civis NAACP peticionou as Nações Unidas para denunciar os paradoxos da democracia americana, uma democracia construída sob o jugo de escravos. É uma história antiga, mais profunda do que Trump. Atual presidente ameaça democracia, mas supressão de votos, violência política e descompasso com opinião popular o antecedem, e é disso que o pleito de 2020 trata.

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