Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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A vacina são os outros

Na vacinação obrigatória e no combate à misoginia, direitos começam quando acaba o umbigo

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Com o olhar perdido na imensidão do próprio umbigo, é impossível entender o direito do outro. Digo mais: o direito do outro não começa quando acaba o nosso: os direitos —os nossos e os deles— coexistem, senão o que chamamos de direito é privilégio de um, e violação de outro. A vacina para os males do nosso tempo passa por compreender que direitos, de fato, só existem fora das nossas bolhas.

A vacina para os males do nosso tempo umbilical, onde a pandemia nos ensinou que sozinhos somos insuficientes, é compreender que os outros somos nós também. Direitos humanos são combatidos com fervor em nosso país porque requerem decifrar o igual valor do outro. É difícil falar de direitos humanos no país da bala apontada para a cabeça de jovens negros executados pela milícia policial simplesmente por serem dois jovens negros numa moto.

É difícil, mas é preciso. Escutemos as histórias que fogem dos nossos umbigos para compreender a dimensão das violências contra os outros. É o que a literatura chama de contra-narrativas ou “counter-storytelling”. Por que se normaliza, numa sociedade misógina, que deputadas sofram constantes assédios violentos como o sofrido por Isa Penna em pleno plenário da casa legislativa estadual em São Paulo?

Cabe aos homens conversarem uns com outros sobre masculinidade que intoxica os espaços de poder. Cabe aos homens compreenderem que da mesma forma que Fernando Cury não quer ter seu saco escrotal violentado no meio do plenário legislativo, tampouco as mulheres querem serem assediadas. Direito a não ser violentado pressupõe a coexistência de todos na luta contra o assédio, senão direito algum há.

O mesmo se aplica ao debate sobre vacinação obrigatória. Ao decidir que vacinação compulsória, não forçada, é constitucional, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou o que já é óbvio: não existe liberdade individual de causar dano ao outro. Isto não foi eu que disse primeiro, foi o liberal John Stuart Mill em 1859. Dado que não vivemos em bolhas de vidro climatizadas, o direito à saúde é desfrutado coletivamente, senão direito algum há.

O presidente Jair Bolsonaro e o personagem Zé Gotinha durante lançamento da plano nacional de vacinação contra a Covid-19, no Palácio do Planalto
O presidente Jair Bolsonaro e o personagem Zé Gotinha durante lançamento da plano nacional de vacinação contra a Covid-19, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira/Folhapress

Ninguém será levado à força para um posto de vacinação, ou preso por isso. Vacinação já é obrigatória para servir ao Exército, ou para matricular em escolas, comprovada por atestado de vacinação, e fraudes nestes atestados acarretam responsabilização. Isso porque vacinação não é um direito ao próprio umbigo sadio: nosso direito à saúde coexiste com o do outro, senão inexiste.

Lembro da trilogia de Rachel Cusk, escritora inglesa que utiliza a alteridade como técnica narrativa e nela exerce sua genialidade: Cusk passa três livros contando a história de sua personagem central falando quase nada sobre ela, mas contando as histórias dos outros com quem ela interage. Assim, sabemos mais dela do que saberíamos se a sua história fosse contada de forma linear, em primeira pessoa.

Escreve Cusk em “Esboço” (2014): “Às vezes já me pareceu que a vida é uma série de punições para tais momentos de desatenção, que uma pessoa molda o próprio destino com aquilo em que não repara ou pelo que não sente compaixão; que aquilo que você não sabe e não se esforça para entender vai se tornar exatamente a coisa que você será forçado a conhecer.”

Direitos são um exercício de alteridade. A vacina para nossos tempos pandêmicos são os outros, porque estes somos nós também. Se praticássemos alteridade, nos preencheríamos das histórias dos outros como se nossas fossem, sentiríamos a repulsa diante do assédio sexual misógino, sentiríamos a dor das 186 mil famílias cujos entes queridos morreram nesta pandemia, sentiríamos o corte da bala que atravessa o corpo negro.

O que Bolsonaro quer não é só desmantelar direitos, mas metralhar o que nos resta de alteridade, de ver o outro como igual. A vacina para nossos tempos pandêmicos é lutar para que nós e eles e elas tenhamos o mesmo valor. Isto é direitos humanos.

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