Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Thiago Amparo
Descrição de chapéu Folhajus

Carta de amor a Lucas Penteado

Sem uma crítica cultural da sociedade que produz dor como entretenimento não teremos entendido nada

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Da matéria-prima do ódio é difícil iniciar um texto, Lucas. Comecemos este aqui, portanto, com afeto. Comecemos este texto com o beijo afetuoso entre você e Gilberto. Amar-se preto e bissexual foi o ato mais revolucionário que você, Lucas, nos presenteou num golpe derradeiro contra o ódio que o cercou, que nos cerca. Quando eu dei meu primeiro beijo, Lucas, foi também com um garoto numa festa, tão preto quanto eu, quanto você, eu senti meus pés flutuarem em liberdade. Espero que você tenha se sentido assim, querido Lucas.

“Que a ruína acabe aqui/ que ele encontre mel onde já foi chacina / que entre na cova do leão & encontre um campo de lilases / que essa seja a cura &, se não, que assim seja”. Estes são, Lucas, os versos do poema “Pequena Prece” de Danez Smith, outro poeta negro, como você, que faz do amor entre homens um santuário onde resiste a vida. Lucas, desejo mais do que você seja abraçado, desejo que este corpo bissexual negro encontre no afeto, e não na solidão, seu campo de flores onde o amor seja possível.

Lucas Penteado e Gilberto se beijam durante festa
Lucas Penteado e Gilberto se beijam durante festa no Big Brother Brasil - Globo

Lucas Penteado, não existe ativismo sem libertação e você sabe disso. Lutamos por um mundo onde não seja a certeza da nossa bolha o parâmetro da retidão, mas sim o abraço afetuoso, a escuta, o amor como ato revolucionário. Opressão é tão estrutural que ofusca como ela se reproduz nas violências diárias, inclusive pelos e entre os nossos, inclusive aquelas perpetuadas supostamente em nome do fim da opressão. Aqueles que despejaram em você o auto-ódio e que fizeram da luta coletiva oportunismo egocêntrico não entenderam nada, Lucas.

Luta não é uma competição de lágrimas, é um abraço.

Dói mais quando o ódio vem de pessoas tão pretas quanto nós, Lucas. Como iremos mudar os olhares que nos desumanizam quando os internalizamos? Escreve bell hooks, em “Olhares Negros: Raça e Representação”: “peço que consideremos a perspectiva a partir da qual olhamos, questionando de modo vigilante, com quem nos identificamos, quais imagens amamos. Se nós, pessoas negras, aprendemos a apreciar imagens odiosas de nós mesmos, então que processo de olhar nos permitirá reagir à sedução das imagens que ameaçam desumanizar e colonizar”.

Quando as máscaras brancas caírem, eis que seus algozes revelarão a pele negra que ainda permanece por baixo delas, e verão, talvez tarde demais, que o auto-ódio delas só levou ao fortalecimento de quem já nos odeia. “Toda vez que um ser humano disse não a uma tentativa de escravizar o seu semelhante, eu me solidarizei com o seu ato”, escreveu Frantz Fanon em “Pele Negra, Máscaras Brancas.” Isso é ativismo. Negar-se a oprimir, a quem quer que seja.

Eis a razão pela qual tu saíste desse ritual de sofrimento que é o BBB: você não é um produto, você é liberdade em toda a sua complexidade. Sua alma genuína não cabe num comercial, Lucas.

O Big Brother não reflete a sociedade em que estamos, ele é a sociedade em que estamos: é o grande pan-óptico em que estamos todos presos, onde rituais de sofrimento se transformam em entretenimento a ser consumido. Quando nossas dores são consumidas pelo capital, o produto perecível aqui somos nós. Sem uma crítica cultural da sociedade que produz dor como entretenimento —como faz duramente Silvia Viana no livro “Rituais de Sofrimento”— não teremos entendido o local de legitimação da sociedade desigual da cultura pan-óptica.

Desnaturalizemos reality shows como o BBB: não são um fato inevitável da vida, mas sim expressão última da ideologia cultural em que vivemos. O BBB somos nós: a autofagia do mundo do trabalho onde nos consumimos até que a falsa meritocracia coroe um premiado; a autofagia do falso ativismo onde ser ativista significa competir para que sua dor seja representativa de toda uma coletividade como um bom comercial onde a lágrima seja a mercadoria.

É no afeto genuíno que nos humanizamos, o resto é mercadoria. Num comercial, Lucas, nunca caberá um beijo.

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