Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

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Guerra da Ucrânia faz pensar em soldado sem nome, político sem vergonha e líder sem alma

Resistência de Kiev, deputado republicano e Vladimir Putin são personagens para entender estado atual das coisas

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The New York Times

Estou pensando hoje em três pessoas cujo comportamento pode ter um impacto significativo sobre o mundo nos próximos meses e possivelmente anos: um soldado sem nome, um político sem vergonha e um líder sem alma.

O primeiro eu admiro; pelo segundo, só devemos sentir desprezo; e o terceiro deve ser conhecido para sempre como criminoso de guerra.

O soldado sem nome são os milhares de ucranianos –os que vestem uniforme e os homens e mulheres civis— que estão defendendo a democracia nascente contra a tentativa brutal de Vladimir Putin de varrer a Ucrânia do mapa.

Soldado da Ucrânia fotografa tanque da Rússia nos arredores da capital, Kiev - Ronaldo Schemidt - 1.abr.22/AFP

Quer sejam soldados profissionalmente treinados ou "babuchkas" (avós) usando smartphones para informar as coordenadas de tanques russos escondidos na floresta atrás de seus sítios, sua disposição de combater e morrer anonimamente para preservar a liberdade e a cultura do país é a refutação máxima da alegação de Putin de que a Ucrânia não é um Estado "real", mas sim parte integral "da história, da cultura e do espaço espiritual" da própria Rússia.

Desconhecemos seus nomes –não sei o de um único general ucraniano, apesar do sucesso que eles vêm tendo—, mas seus feitos mostraram a Putin que o país pelo qual lutam é muito real, muito distinto e está muito disposto a se defender ferozmente.

Se os líderes da Ucrânia optarem por selar um acordo de paz com a Rússia, devemos ajudar a fortalecê-los em negociações, mas, enquanto eles optarem por resistir, devemos ajudar a armá-los. Porque eles não estão defendendo só a Ucrânia, mas a possibilidade de uma Europa inteira e livre, em que um país não possa simplesmente devorar outro. Isso contribui não apenas para uma Europa melhor, mas para um mundo melhor.

A segunda pessoa na qual estou pensando é Kevin McCarthy, líder republicano na Câmara –um homem que, como agora sabemos, não teve a coragem de ser fiel à própria manifestação passageira de coragem. Temos que agradecer ao trabalho de reportagem de Jonathan Martin e Alexander Burns, do NYT, que apreciam plenamente o quanto o comportamento de McCarthy é um exemplo de covardia em quatro atos.

Primeiro ato. Martin e Burns noticiam que McCarthy teria dito a colegas do Partido Republicano o que sentiu em relação a Donald Trump após o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio: "Estou farto desse cara" —descrevendo as ações do então presidente como "atrozes e totalmente erradas". Trump provavelmente sofreria impeachment, disse McCarthy, acrescentando que pretendia recomendar a ele: "Você deveria renunciar".

Segundo ato. Depois de as revelações serem publicadas, no dia 21, McCarthy emite comunicado declarando que "as reportagens do New York Times a meu respeito são totalmente falsas e equivocadas".

Terceiro ato. Naquela noite, graças a um áudio vazado, publicado pelo NYT e colocado no ar no programa de Rachel Maddow na MSNBC, o mundo inteiro pôde ouvir McCarthy dizendo a uma conferência da liderança republicana na Câmara em 10 de janeiro que seu plano era dizer a Trump que o impeachment "será aprovado e que minha recomendação será que o senhor deve renunciar" —exatamente o que McCarthy, horas antes, negou ter dito.

Quarto ato. Em vez de pedir desculpas a seus eleitores e ao povo americano por mentir, McCarthy telefona a Trump para se explicar e dizer por que deve continuar em suas boas graças. Trump, magnânimo, perdoa o puxa-saco pelo pecado de ter dito a verdade.

O legendário técnico de basquete da Universidade da Califórnia John Wooden costumava dizer que "a verdadeira prova do caráter de um homem é o que ele faz quando ninguém está olhando".

O republicano Kevin McCarthy após evento no Capitólio, em Washington - Kevin Dietsch/Getty Images - 27.abr.22/AFP

A maioria dos legisladores gostaria que o mundo acreditasse que, no momento em que tudo estava em risco para a América, eles disseram a verdade e defenderam a Constituição contra um presidente que tentava subvertê-la. McCarthy disse reservadamente a colegas republicanos que era essa sua postura.

Mas então ele revelou seu caráter real. Quando se deu conta de que fazer o que era certo pelo país poderia lhe custar o apoio de Trump e seu sonho de se tornar presidente da Câmara, mentiu sobre ter dito a verdade. Pior: quando suas mentiras e seu mau-caratismo foram expostos, muitos do partido o apoiaram assim mesmo.

Esse é o novo "macartismo" (o "kevinmacartismo"), em que um político pode dizer qualquer coisa, até mesmo mentir sobre ter dito a verdade, e sair ileso.

Essa tendência representa uma ameaça tão grande à democracia quanto qualquer coisa que Putin esteja fazendo. Porque se um político vendido sem-vergonha e vergonhoso como McCarthy pode vender sua alma a gente suficiente para se tornar presidente da Câmara, ele se tornará segundo na linha de sucessão à Presidência, após o vice-presidente.

E é uma ameaça porque tudo que McCarthy e seus colegas fizeram erode a distinção entre nosso sistema e o liderado pelo homem sem alma –Putin, que tampouco hesitará em recorrer a qualquer meio para conservar-se no poder, quer seja encarcerando e alegadamente envenenando seus críticos ou envenenando democracias com desinformação.

Mas Putin não é apenas obcecado por conservar seu poder e disposto a violar qualquer norma para isso. Ele também é obcecado pela perda do poder, dignidade e respeito da Rússia –resultantes da queda da União Soviética— e a necessidade de restaurá-los.

Sua decisão insensata de invadir a Ucrânia foi movida pelo desejo de frear a expansão da Otan e da União Europeia para mais perto das fronteiras da Rússia. Mas ele quis fazê-lo de uma maneira que mostrasse a todos como o Ocidente é fraco e dividido e como a Ucrânia não é um país real. Para isso, ele invadiria e ocuparia o lugar em uma semana. As aulas iam começar, e Putin ia dar uma lição ao Ocidente.

Só que o plano de aula de Putin deu muito errado. Em vez de dar uma lição ao Ocidente –e a todos os ucranianos que queriam fazer parte do Ocidente— e apagar as humilhações sofridas pela Rússia, Putin vem sendo ainda mais humilhado.

Precisamos avançar com cuidado aqui. Não há nada mais perigoso que um líder duas vezes humilhado e munido de armas nucleares.

Putin é capaz de fazer qualquer coisa. Quando olhamos para como essa guerra já devastou as economias e os Exércitos da Rússia e da Ucrânia, o lugar de Putin na história já está garantido: ele é o líder que destruiu dois países para salvar uma pessoa de humilhação –ele próprio. Mas fará qualquer coisa para continuar a tentar se poupar de humilhação.

Então minha conclusão é a seguinte: alguns anos atrás foi publicada uma biografia em hebraico de Ariel Sharon com o título "Ele Não Para no Sinal Vermelho". É um título apropriado também para os nossos tempos. O que acho tão assustador no estado atual do mundo é o número de líderes dispostos a atravessar faróis vermelhos de maneira descarada, em plena luz do dia e com um senso de impunidade absoluta.

Ou seja, dispostos a passar por cima das barreiras legais e normativas que mantiveram o mundo relativamente pacífico nos últimos 70 anos, durante os quais não tivemos guerras entre grandes potências e que permitiram que mais pessoas emergissem da pobreza extrema em menos tempo que em qualquer outro período da história.

Vamos sentir falta dessas barreiras se elas deixarem de existir. Mas para conservá-las é preciso que ajudemos todos aqueles ucranianos anônimos que lutam por sua liberdade a alcançar vitória. E precisamos garantir que a busca de Putin por encontrar dignidade, esmagando o movimento de liberdade ucraniano, fracasse.

Mas nada disso será o bastante se todos aqueles políticos na América que também pensam que podem atravessar qualquer farol vermelho para conquistar ou manter-se no poder conseguirem seu intento. Quem seguirá nosso modelo se isso acontecer?

Não consigo pensar em nenhum outro momento de minha vida em que senti o futuro da democracia americana e o futuro da democracia globalmente mais em dúvida. E não se iluda —as duas estão interligadas. E não se iluda —ambas ainda podem acabar vencedoras ou derrotadas.

Tradução de Clara Allain

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