Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Descrição de chapéu Bienal do Livro

Elza Soares era a mãe preta da música brasileira e de todos nós

Mesmo debilitada, artista foi até seus últimos dias a artista de sempre, que cantava lindamente e irradiava simpatia

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Tom Farias

Faz uns dez anos que estive pela primeira vez frente a frente com Elza Soares. Ocorreu depois de um show dela. Não sei dizer exatamente o que senti, pois passou pela minha mente um misto de encantamento e espanto. A emoção foi enorme, de mistura com um riso interior de satisfação e gratidão por estar diante de uma das maiores estrelas da música popular brasileira.

Alguns anos antes, eu tinha lido Ruy Castro, autor do estupendo "Estrela Solitário - Um Brasileiro Chamado Garrincha". Em função do livro, a familiaridade com Elza se tornou maior. O encontro de 2012 só ajudou a confirmar a admiração pela artista e pela mulher lutadora.

Além do mais, duas coisas me ligavam particularmente à rainha da nossa música —o fato de ela pertencer a uma família negra e de termos vivido na mesma região empobrecida da cidade do Rio de Janeiro, a favela de Vila Vintém, entre os bairros de Realengo e Padre Miguel.

Sou cria do subúrbio, da zona oeste carioca, estudei parte da minha vida na Escola Villa Lobos, em Padre Miguel, e Presidente Roosevelt, em Realengo. Na minha infância, ouvia diariamente histórias sobre Mestre André, regente da bateria campeã da Mocidade Independente de Padre Miguel, e Celsinho da Vila Vintém, que iniciou a vida do crime como uma espécie de Robin Hood da favela, roubando cargas de caminhão para distribuir aos pobres da comunidade.

Até hoje tenho parentes vivendo entre Padre Miguel e Bangu, locais caros para Elza Soares, à época apenas Elza Gomes da Conceição. E, me recordo, no frescor da memória daqueles tempos, das vielas dessa pequena cidadela urbana, com suas casinhas que se assemelham a senzalas e velhos mocambos quilombolas. Elza Soares é cria dessa região, que hoje pouco se lembra dela.

Passaram-se alguns anos para eu reencontrar Elza, entre 2018 e 2019, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Lembro-me que ela dividiu uma mesa de bate-papo com Martinho da Vila sob mediação de Zeca Camargo. Amigo de Martinho, fiz a intermediação da ida do sambista à Bienal. No bate-papo, Elza, sempre com bom humor, brincou com Martinho sobre a conhecida maneira de ele ser "devagar, devagarinho". O público exultou.

Elza também falou da mania de carregar um alfinete de prender roupas. A primeira vez que o usou foi para se apresentar no programa de Ary Barroso, na Rádio Tupi, na praça Mauá. Magra de pouco mais de 30 quilos, Elza "pegou" um vestido emprestado da mãe, Dona Rosária, com mais do dobro de seu peso, e foi cantar no programa do afamado apresentador e compositor mineiro.

O auditório do Calouros em Desfile riu daquela mulher estranha, desajeitada e magrela. Ary Barroso, desmedidamente gaiato, perguntou de que planeta a candidata vinha. Na lata, ela respondeu: "Do mesmo planeta que do senhor, seu Ary. Do planeta fome".

O prestigiado autor de "Aquarela do Brasil" emudeceu diante da resposta curta e grossa de Elza, que precisava tirar nota 5, a máxima, e levar para casa o prêmio em dinheiro que aplacaria a fome do seu filho —dois deles tinham morrido de inanição alimentar. Foi o que aconteceu. Desde então, não parou mais de cantar, para felicidade da nação. Durante a Bienal, Elza anunciou o lançamento do CD "Planeta Fome".

Outro momento glorioso do meu encontro com Elza foi durante a LER - Salão Carioca do Livro, no Rio, em novembro de 2019. Os organizadores não tinham certeza de que Elza fosse fechar o evento, depois de seguidos convites. Como curador, falei com ela, e ela foi. Que fechamento esplêndido! O público na Biblioteca Parque, da avenida Presidente Vargas, ganhou uma das lindas conversas daquela noite.

Mediado por Flávia Oliveira e Zeca Camargo, Elza se superou. Contou histórias divertidas, interagiu com todos intimamente e fez questão, embora debilitada, de entrar e sair andando do palco. No camarim, me deu um abraço demorado e aquela "bitoca" carinhosa, sua marca registrada.

Por fim, reencontrei-a no lançamento da sua biografia, "Elza", de novo com Zeca na direção da conversa. Guardo comigo seu autógrafo: a marca da sua boca na página de abertura do livro. Foi um momento inesquecível. Ela fez questão de refazer o batom vermelho na boca, e selar o livro, com uma expressão forte de carinho no rosto. Elza era uma verdadeira diva, uma dama negra, a mãe preta da música brasileira e de todos nós.

Fui revê-la pela última e derradeira vez em fins de 2021 durante a Expo Internacional, na Semana da Consciência Negra, no Anhembi, em São Paulo. Elza era a mesma Elza de sempre. Cantou lindamente, irradiou simpatia. Nesse dia, apenas trocamos um sinal de longe com as mãos. Não mais voltei a falar com ela nem a vê-la. Vá para o seu destino sagrado, com muita luz, minha divina ancestral! E obrigado por tanto carinho e pelas inesquecíveis "bitocas".

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