Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias
Descrição de chapéu África

Moïse Kabagambe é vítima da barbárie na nação das armas e do negacionismo

Sob a insígnia da impunidade e do compadrio, país segue vendo a pele preta como a pele alvo

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Estive em duas ocasiões distintas na República Popular do Congo, em 2010 e 2011. Em ambas eu não consegui conhecer totalmente, como desejava, a dimensão do país. Ele é imenso, é gigantesco e bem complexo.

Eu passava uma temporada de trabalho na cidade do Soyo, município da província do Zaire, território de Angola. Soyo é ainda hoje uma cidade com parcos recursos materiais, estrutura habitacional e serviços públicos, embora abrigue uma planta de petróleo e gás de grandes dimensões, resultado de um consórcio de importantes empresas internacionais, com investimentos na ordem de US$ 9 bilhões.

Nas duas ocasiões em que fui ao Congo, o fiz por intermédio de uma pequena embarcação, singrando a bacia do rio Zaire —ou rio Congo. O termo "Zaire", derivado do francês, que dizer "o rio que traga todos os rios". Do Soyo ao território do Congo há uma distância de meia hora, um trajeto muito parecido com uma viagem do terminal de barcas da praça 15 de Novembro, no Rio de Janeiro, até a cidade de Niterói, do outro lado da baía da Guanabara.

A minha curiosidade era imensa para conhecer o Congo, em especial sua cultura e sua língua, ou línguas, pois, além do francês, se falam por lá muitas outras línguas, sobretudo entre a população mais antiga.

Eu sou apaixonado pelo estudo da linguística. Por exemplo, na cidade do Soyo, onde circulava um número grande de congolenses, aproximar-me deles dava-me a sensação de estar mais próximo de sua origem, cultural e idiomática.

Ouvir o seu francês, dentro de uma dicção crioula, arrastada, musical e sonora, tornava a audição deles, pelas frases e a fonética, algo que me acalentava. O francês era a língua oficial do Congo, mas ouvi-los como falantes da língua kituba, que tem ramificações no quicongo, grupo linguístico de linhagem bantu, também corrente em Angola, me aproximava ainda mais dos congolenses, assim como ocorreu com os angolanos.

Nas duas ocasiões em que adentrei o "sertão" congolês, ciceroneado pelo amigo angolano André Vemba, deparei com um país em convulsão, empobrecido e armado. Vemba já o sabia, tanto que me pediu cautela e moderação. Eu queria falar e estar com as pessoas.

O país vivia momentos tensos de uma guerra praticamente tribal, intestina, no confronto da ordem e poder. Era visível nos rostos de homens e mulheres pretos, crianças e velhos, o clima de terror e medo que pairava no ar, fazendo com que todos se sentissem alvos de uma investida bélica iminente.

Entendo perfeitamente quando a dona Lotsove Lolo Lavy Ivone, conhecida no Brasil como Ivana Lay, mãe de Moïse Kabagambe, jovem de 24 anos brutalmente assassinado num quiosque da Barra da Tijuca, diz que fugiram do Congo "para que não nos matassem".

Quem, como eu, pisou aquele solo africano, tem perfeita noção do que essa senhora está dizendo. O Brasil é um país hostil e assustador. Os herdeiros dos escravistas e latifundiários continuam a defender sua territorialidade com práticas desumanas, fazendo uso de seus tribunais de exceção particulares.

Infelizmente Moïse Kabagambe não é e não será a única vítima desse sistema racista. Repetem-se todos os dias cenas dessa barbárie que assola a nação, que tem as armas e o negacionismo como princípios. O Atlas da Violência (apurado em 2021) continua atual: a cada 23 minutos uma pessoa negra —sobretudo jovem— é morta no Brasil, à vista de todos e da Justiça.

A Justiça do país é branca e autocrática. Negros não têm acesso às suas decisões, porque tampouco atuaram na sua constituição e criação. Portanto, a Justiça não atende a população negra, seja ela nativa ou estrangeira, como é o caso da família de Moïse Kabagambe.

Na tábua rasa da lei, o negro é sempre um "criminoso"; o branco é sempre um "suspeito". O sargento que matou a tiros o seu vizinho negro no condomínio de São Gonçalo, sob o argumento de que o confundiu com bandido, sabe exatamente onde é o lugar da pessoa negra na sociedade brasileira. Negros não podem habitar o mesmo espaço que ele, que é um homem branco, detentor de todos os privilégios desde o nascimento.

Emicida nos ensina cantando: "existe pele alva e pele alvo". Somos, certamente, a pele alvo. Pele alvo que a abolição da escravatura não resolveu, ao contrário, gerou outros ódios, outras dores. Por que ainda tanto nos matam? Que projeto é este de país em que a pele preta continua sendo pele alvo? A calamidade e o descalabro tomam conta dos ambientes públicos e privados, sob a insígnia da impunidade e do compadrio.

Não vai longe em nossa memória a execução da jovem Kathlen Romeu, grávida, ou do João Alberto Freitas, no Carrefour de Porto Alegre, para citar apenas uns. Quantos mais precisam morrer? O Brasil, 134 anos após a abolição da escravatura, continua em franca guerra contra os negros. Sem dúvida, é urgente uma nova abolição, mas desta vez com uma Isabel negona no comando da nação.

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