Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Empregadas domésticas exploradas revelam a nova escravidão no Brasil

Abusos trabalhistas vividos por mulheres negras expõem uma humanidade para lá de cruel, violenta e ofensiva

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"Fico com receio de pegar na sua mão branca", disse dona Madalena Santiago da Silva, empregada doméstica que viveu por 54 anos trabalhando em uma casa de família no chamado regime análogo à escravidão. Por todo o momento me pergunto: por que será que não me espanto mais com ocorrências dessa natureza no Brasil?

A resposta. Porque esses fatos viraram uma rotina nos noticiários dos jornais e da televisão aberta. Praticamente toda semana nos chega um caso novo, cada um mais escabroso do que o outro. Mal impactado de um, outro nos chega ainda mais violento, expondo uma humanidade para lá de cruel, para lá de violenta, para lá de desumana, ofensiva do ponto de vista social.

O caso de dona Madalena da Silva, uma senhora da cidade de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador, que 54 anos dos seus 62 atuais passou sob regime escravo, sem salários, recebendo maus-tratos físicos e psicológicos, sendo roubada pela "patroa" –a mesma pessoa, hoje uma mulher adulta, que ela ajudou a criar, dedicando carinho e atenção.

Representantes de movimentos sociais se manifestam à favor da Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho Escravo, que foi aprovada pelo Senado em 2014 - Sergio Lima - 8.mai.2012/Folhapress

O próprio pai acusa em carta que a filha "retirou [roubou] toda a pequena poupança, produto de uma aposentadoria de 35 anos de trabalho", de dona Madalena da Silva, além de realizar empréstimo de R$ 20 mil em nome da empregada, reconhecida como "escrava" e tratada no documento como "a mãe preta".

Não é difícil imaginar o que significa uma "pequena poupança" para quem viveu "35 anos de trabalho". O que está embutido nesse raciocínio é a exploração da mão de obra sob o pretexto de pagamento de salário, que, sem dúvida, seria miserável, o que, mesmo assim, ela nunca recebeu.

É tão desumana essa situação que a única coisa que me vem na mente é o processo vivido por seres humanos escravizados durante o período colonial e monárquico brasileiros, dentro da tópica do senhor e do escravo, das sinhás e suas amas pretas de leite.

Sob vários aspectos, a reprodução desse sistema no Brasil, 134 anos após da abolição da escravatura pelo decreto da Lei Áurea, ainda parece longe do fim, ainda mais nas regiões com grande demanda de mão de obra baratizada, concentrada em massa nos subúrbios e nas chamadas periferias dos grandes centros urbanos, onde habita a população pobre e preta. "A carne mais barata do mercado é a carne negra", já entoava a saudosa Elza Soares.

Ainda se confunde muito hoje essa ideia de "casa de família" entre nós. Parece que "casa de família" é de gente branca, não de pretos. O mesmo acontece com o conceito de "casa grande e senzala", que nem de longe perdeu seus estamentos arcaicos, escravistas, embora a totalidade da sociedade se julgue moderna e considere esse país o paraíso da "democracia racial".

Não vou aqui trazer dados estatísticos sobre os casos de escravidão doméstica porque seria um longo percurso por números e estatísticas, e tais dados podem facialmente ser obtidos via internet.

O certo é o seguinte: escravizar quem quer que seja, independentemente da condição socioeconômica, educacional ou cultural, é crime, previsto no artigo 149 do Código Penal, que existe desde 1940, com suas atualizações. O artigo preconiza que o trabalho análogo à escravidão recai sobre os "seres humanos [que] estão submetidos a trabalhos forçados, jornadas intensas que podem causar danos físicos, condições degradantes e restrição de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto", e diz ainda que "a pena se agrava quando o crime for cometido contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem". É sobre isso, nada mais além disso.

Precisamos pensar em ampliar o alcance dessa lei para punir mais rigorosamente tais pessoas que a desrespeitam e ignoram. Com a brandura da lei em tais casos —não há punição visível, a não ser pagamento de cestas básicas ou serviços comunitários—, contando com a inibição dos denunciantes —em geral as vítimas— e a morosidade das ações da justiça, muitas outras Madalenas ainda serão —e estão sendo— submetidas a condições escravas, quando não são mortas, por essas mesmas circunstâncias.

Como podemos supor, em se tratando de Brasil, este é um poço sem fundo. E vida que segue.

Por exemplo, há dois anos, Leda Lúcia dos Santos foi resgatada em situação muito idêntica à de dona Madalena Santiago da Silva. Leda viveu 50 anos –ela tem hoje 62– em regime de escravidão, em bairro de classe média de Salvador, também na Bahia, para a "família" de Hildete Pimenta Rocha, sem receber salários, sem o direito de sair de casa e sem luz elétrica. "Não podia nem ligar o rádio", declarou à época em reportagem do Fantástico, da Rede Globo, pois a patroa mandou cortar a eletricidade do quarto dela, para evitar gastar energia, porque Leda usava os momentos da noite, para se "distrair", fazendo bordados.

Aqui mesmo nesta Folha, no artigo "Mulheres Pretas", publicado em janeiro de 2021, denunciei o caso de outra Madalena –a Madalena Giordano. Esta humilde senhora, foi mantida em regime de escravidão por 38 anos —resgatada em 2020 por auditores fiscais do trabalho e pela Polícia Federal—, em Pato de Minas, estado de Minas Gerais.

Giordano, pela violência da submissão sofrida, se desumanizou: "Eu não tinha ideia de que a situação que enfrentava era abusiva", chegou a dizer quando foi encontrada. Foi duro para ela entender a realidade das ofensas infringidas, até cair em si: "Foram 38 anos que não pude viver, apenas sobreviver". Apenas no ano passado, Madalena Giordano pode comemorar sua primeira festa de aniversário. Hoje ela tem 48 anos. "Estou liberta. Estou livre", festeja a ex-empregada doméstica, sorrindo também pela primeira vez na vida.

Estas três mulheres simbolizam muito sobre o país em que vivemos, calcado pelo paradoxo da Casa Grande e da senzala moderna —os quartinhos de empregada— e o domínio dos sinhôs e das sinhás sobre os serviçais –seus escravos contemporâneos.

Carolina Maria de Jesus cantou, no início da década de 1960, em "O Pobre o Rico": "É triste a condição do pobre na terra/ Rico quer guerra, pobre vai na guerra/ Rico que paz/ Pobre vive em paz/ Rico vai na frente/ Pobre vai atrás/ Rico faz guerra, pobre não sabe por que/ Pobre vai na guerra tem que morrer".

Os números são muito altos para tanto descaso e morosidade das autoridades públicas com a vida alheia. Esta crônica não teria término se fôssemos contar todos os casos que nos chegam diariamente, pelos noticiários ou pelas redes sociais, outro importante veículo de denúncia.

Além do mais, as pessoas coabitam anos e anos numa relação extremamente abusiva sem que ninguém, na chamada "casa de família", se condoa ou se apiede, nem se dê conta de que a prestadora de serviço não convive com seus parentes, não tenha dia de folga, lazer, direito a bem-estar social, algo inerente a qualquer pessoa na face da terra.

Em verdade, a situação assemelha-se a um escabroso pacto social, que produz "pessoas do bem", sujeitas a vistas grossas sobre o sofrimento do outro. Isto só é possível num regime de casta e de privilégios, onde a pessoa humilde e negra é vista pela brutalidade, é tida como não-pessoa, do mesmo modo que, durante os 350 anos de escravidão africana no Brasil, homens e mulheres negros não eram tratados feitos cidadãos e cidadãs, mas sim como "coisas", peças e mercadorias, arrolados nos inventários de bens, que se passavam de pai para filhos, simplesmente como propriedades –assim como terras, prédios e animais.

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