Não somos mais ou menos humanos —somos humanos, de fato. A naturalização da existência –preceito da condição de nossa vida– é que nos transforma e nos condiciona.
Estas são partes das reflexões que me acudiram após participar da pré-estreia de "O Pai da Rita", filme brasileiro dirigido pelo experiente cineasta Joel Zito Araújo, já em exibição nas melhores salas de cinemas do país.
Joel Zito é o mesmo diretor do esplêndido "Filhas do Vento", longa de 2005, que reuniu o verdadeiro quarteto fantástico das telas brasileiras à época –Ruth de Sousa, Taís Araújo, Maria Ceiça e Dani Ornellas e contou com a participação especial do ator Milton Gonçalves e da cantora e atriz Thelma de Freitas.
Além de "Filhas do Vento", Joel Zito já tem no currículo documentários e filmes ficcionais bem representativos, como "A Negação do Brasil", vencedor do festival É Tudo Verdade e "Meu Amigo Fela", espécie de cinebiografia de Fela Kuti –o genial nigeriano nascido Olufela Olusegun Oludotun Ransome Kuti, que viveu entre 1938 e 1997.
O longa-metragem, que estreou no dia 19 de maio, tem um elenco potente, o festejado Aílton Graça, a histórica Léa Garcia, o grande Wilson Rabelo –com ótimo papel no premiado "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que teve Sônia Braga no elenco– e Elisa Lucinda, esta não só uma grande atriz, mas uma múltipla artista, do palco, das telas e da palavra, pois é poeta e romancista de talento.
O filme traz para a cena cinematográfica Jéssica Barbosa, no papel de Rita, a misteriosa filha de pais desconhecidos, e a participação muito especial de Paulo Betti, um craque, que traz para o filme de Joel Zito um toque de hilaridade com seu requinte e sutileza interpretativa, que tem marcado sua trajetória, sobretudo, na televisão.
Eu saí do cinema, na sessão realizada em São Paulo, trazendo o filme comigo para casa. O quanto um filme –que procura narrar a história de alguém que quer conhecer a identidade do seu verdadeiro pai– aciona gatilhos dentro da gente.
A história conta a aventura de Roque e Pudim, dois sambistas do bairro do Bexiga, em São Paulo, ligados à tradicional escola de samba Vai-Vai. Os dois, no passado, se apaixonaram por uma bela passista da escola e todo esse enredo volta à tona com o surgimento da filha, que tem o mesmo nome da mãe, que surge à procura do pai, que ela não sabe exatamente quem é, se o boêmio e mulherengo Pudim —Aílton Graça, que rouba a cena em alguns momentos do filme— ou o sisudo e talentoso compositor Roque –vivido pelo ator Wilson Rabelo.
"O Pai da Rita", roteirizado por Di Moretti, não é um filme de ação, é um filme de emoção. E é sobre a ótica de processos emocionais que ele precisa ser visto. A situação do filme pode ser observada em todos os recantos do país. No Brasil, em 2020 e 2021, mais de 320 mil crianças foram registradas sem o nome do pai –ao todo, 160.407 bebês tiveram apenas o registro da mãe no primeiro ano mencionado e 167.339 no ano seguinte. É uma calamidade que o filme expõe de forma artística e leve.
O filme de Joel Zito, aliás, entre lembranças e conflitos, talvez inconscientemente, traz esse assunto para uma nova ordem do dia. Inspirado livremente na canção "A Rita", do compositor Chico Buarque, que chega a entrar na história do filme como suposto pai também, mas não aparece na telona colorida, é uma comédia dramática, "mas um filme leve, feliz", como disse o seu diretor no discurso de abertura da sessão da película.
Quero destacar ainda no filme mais uma grande referência nos projetos cinematográficos realizados por Joel Zito, a presença de forte elenco negro. Lázaro Ramos, na direção de "Medida Provisória" —ainda nos cinemas—, repescou esse potencial, tanto ignorado pela cinematografia brasileira e pelas grandes produtoras, do qual Joel Zito é pioneiro –não só com o já clássico "Filhas do Vento", mas em importantes documentários como "Raça", realizado em parceria com Megan Mylan, documentarista americana que conquistou o Oscar na área em 2009.
Em "O Pai da Rita" ele repete a dose trazendo grandes atores e atrizes, além das boas cenas proporcionadas com a interpretação de Jéssica Barbosa –atriz revelação no Festival do Cinema Negro em 2009. Juntam-se a ela Nathália Ernesto e o próprio diretor, que aparece em uma das cenas.
É preciso assistir a "O Pai da Rita" com atenção e cuidado. O filme inicia bem, com o samba da velha dupla Roque e Pudim, ambos da velha guarda da tradicional da escola de samba do Bexiga, e fica lento lá pelo meio, recuperando o tom inicial já no final. Paulo Betti, na pele do intruso garçom Sauro, é uma ótima pedida, mas Léa Garcia continua no pódio das grandes damas do cinema nacional.
Ao final, qual a conclusão? Aqui nenhuma, pois espero que vejam o filme para descobrir. Mas a personagem vivida por Jéssica Barbosa, a Rita do filme, empreende uma verdadeira saga na busca da identidade do pai, fazendo com que os dois velhos amigos de décadas –Roque e Pudim– se estranhem no final. É engraçado e provoca risos.
O roteirista e o diretor encontraram uma ótima solução para encerrar o filme, um dos seus trunfos, o que traz uma certa frustração para quem gosta de soluções prontas e cenas perfeitas. É e não é o caso. Ou seja, "O Pai da Rita" não é risível, mas uma obra pensante, apesar de tudo. São quase duas horas de uma sessão de cinema que nos faz voltar para casa com o filme na cabeça.
Este, sem dúvida, tem sido um dos grandes méritos do cineasta Joel Zito Araújo.
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