Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Oswaldo de Camargo segue ensinando sobre ativismo negro com seu legado

Ignorar sua obra, que está sendo reeditada, é uma forma de apagamento de um dos maiores intelectuais brasileiros vivos

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Existe ou não civilização sem poesia? E sem a poesia afro-brasileira? Esses dilemas estão nitidamente expressos quando nos deparamos com a produção literária de Oswaldo de Camargo, poeta, intelectual, militante do movimento negro brasileiro, certamente uma das maiores referências em literatura brasileira de todos os tempos.

Não há apenas puro panegírico nesse ponto. Minha breve dissertação sobre "esse monstro sagrado" de nossa oralidade literária, esse griô da nossa poesia, prende-se simplesmente à concepção e ao engajamento que têm norteado a sua vida e produção nas últimas décadas de nossa civilização, ele com tantas contribuições no campo do pensamento negro e da inteligência nacional, debruçado sobre os albores de um país fundado no preconceito que é o resultado centenário de um longo processo de escravidão negra nas Américas, onde o Brasil se localiza como uma espécie de "porta de não retorno".

O escritor Oswaldo de Camargo em retrato, aos 84 anos - Raphael Aguiar - 10.jul.20/Arquivo Pessoal

​Oswaldo de Camargo relançou há poucos meses, pela Companhia das Letras, dois dos seus mais importantes livros. Primeiro, "O Carro do Êxito", excelente coletânea que reúne 14 contos, publicados originalmente em 1972, e agora redefinida a partir de um ótimo projeto gráfico, com desenhos conceituais, que ilustram a obra, pelo lápis de Marcelo D’Salete e prefácio do mestre Mário Augusto Medeiros da Silva.

O outro livro publicado é "30 Poemas de um Negro Brasileiro", reunião de poemas que amplia a edição realizada em 1961 —"15 Poemas Negros"—, que contou com belo prefácio do sociólogo Florestan Fernandes, reproduzido na nova edição.

ilustração em preto e branco
Ilustração de Marcelo D'Salete para o livro de contos 'O Carro do Êxito', de Oswaldo de Camargo - Marcelo D'Salete/Reprodução

Sou bastante suspeito de falar em Oswaldo de Camargo. As razões são muitas e plausíveis: elas têm a ver com a admiração pela pessoa humana que ele representa e pela qualidade da sua produção, enquanto poeta e intelectual.

Sua atividade literária é longa, e vem desde a juventude, quando militou, desde o final dos anos 1950, na Associação Cultural do Negro, iluminada sob a esplêndida figura do combatente José Correia Leite, e outros ativistas da causa da negritude. O ideário do grupo consistia na "desmarginalização e recuperação social de todos os elementos que vivem em situação marginal, pincipalmente o negro".

Oswaldo de Camargo foi um grande ativista da Associação Cultural do Negro. Ativo e inteligente, editou a revista Níger, cuja edição de 1960 homenageou a escritora Carolina Maria de Jesus, e esteve à frente das publicações de alguns livros que saíram pela associação, um dos quais o dele, o referido "15 Poemas Negros".

Como poeta, Oswaldo estreou em 1959, com um livro que deu o que falar na época: "Um Homem Tenta Ser Anjo". Continua dentro desta mesma visão do "protesto negro", com outras obras que marcariam o percurso pelo caminho não só da poesia, mas da ficção, com "O Carro do Êxito" e, em seguida, a novela "A Descoberta do Frio", de 1979, um dos seus grandes livros, que tem continuidade apenas em "O Estranho", que surge em 1984.

A republicação da sua obra, atualizada e reprogramada graficamente, coroa um resgate há muito negligenciado pelas editoras brasileiras, sobretudo as de maior porte. Ignorar a obra de Oswaldo de Camargo é uma forma de apagamento de um dos maiores intelectuais brasileiros, que ainda hoje, ativo e forte, continua, às portas dos seus 85 anos, a se manifestar de maneira consciente e muito determinada sobre os rumos do Brasil.

Os textos produzidos por Oswaldo de Camargo, que também escreveu inúmeros ensaios sobre perfis literários e biografias, também dizem muito de um país que persiste na manutenção da desigualdade social, com fortes raízes no racismo estrutural e no preconceito de raça e na chamada "classe da cor", aqui referenciada pelo aspecto da epiderme negra e pelo legado deixado da origem africana que compõe a etnia da maioria do povo brasileiro.

pintura de homem negro de óculos
Pintura de O Bastardo na capa de '30 Poemas de um Negro Brasileiro', antologia inédita de Oswaldo de Camargo - O Bastardo/Divulgação

Ter de volta os livros "O Carro do Êxito" e "30 Poemas de um Negro Brasileiro" é reverenciar a história de um grande poeta e escritor comprometido com o bom oficio da escrita e os fundamentos da sua ancestralidade, na esteira do pensamento que o transformaram, ainda hoje, no melhor exemplo a ser seguido pelas novas gerações, que veem nele o "limiar das experiências humanas do negro brasileiro", para usar a lapidar expressão de Florestan Fernandes, incentivador de um juvenil Oswaldo e prefaciador de sua obra.

Por esses dias estive, de forma remota, com Oswaldo de Camargo, num bate-papo sobre literatura, durante a realização do 10º Festival Literário de Araxá, o Fliaraxá, na companhia da também poeta e romancista Míriam Alves —brilhante autora, entre outros, do recente "Poemas Reunidos", das editoras Luna Parque e Fósforo.

Como sempre, ouvir Oswaldo é ter uma aula para além dos cumes do "notório saber". Oswaldo tem o poder de dissertar sobre todos os temas que englobam o fazer e a história da literatura produzida pelo negro brasileiro, de hoje e de ontem, ou seja, do presente e do passado.

Eu não me contive e quis reviver com ele os tempos em que nos reuníamos na sua casa, ao lado do saudoso poeta Paulo Colina, morto em 1999. Regado a assuntos sobre poetas e poesias, éramos mimosamente brindados com ótimos sucos de fruta e o saboroso cuscuz paulista, feito pela habilidosa e gentil dona Florence, carinhosamente chamada de dona Eunice, esposa de Oswaldo, já morta.

Oswaldo de Camargo, natural de Bragança Paulista —acabou de ter uma praça inaugurada em seu nome na cidade, aliás—, perdeu a mãe e o pai muito cedo. Trabalhou no campo. Com a perda dos pais, passou a viver no Preventório Imaculada Conceição, na mesma cidade. Não conseguiu seguir a vida eclesiástica; foi rejeitado por ser pobre demais e negro. Mas a vida de pobreza, praticamente miserável, e a tragédia familiar, não o impediram de ter consciência sobre a sua condição racial e se tornar poeta e escritor.

Sua presença na vida cultural brasileira é responsável pelo surgimento de inúmeros poetas e escritores. Oswaldo é fundador dos "Cadernos Negros", editorado há mais de 40 anos pelo Quilombhoje, pelo qual a hoje consagrada Conceição Evaristo publicou seus primeiros textos e poemas.

Ainda hoje Oswaldo de Camargo é uma referência. Sua voz continua ecoando e traz sempre, como base, a experiência vivida por tantas décadas de militância e ativismo negro.

O sociólogo Florestan Fernandes, que frequentou e conheceu Oswaldo de Camargo na Associação Cultural do Negro, em 1961, de maneira categórica, profetizou a trajetória do griô nascido em Bragança Paulista: "Um poeta da envergadura de Oswaldo de Camargo, se persistir em aperfeiçoar-se e em trabalhar duramente, poderá marcar com sua presença tanto os movimentos sociais e culturais do meio negro quanto a renovação de sua poesia".

No mesmo texto, reproduzido em agora "30 Poemas de um Negro Brasileiro", Florestan ainda fala, referindo-se a Oswaldo nos "frutos de sua contribuição" que "pensam cada vez mais no fluxo da vida humana", para logo depois afirmar que "ninguém melhor que um poeta para revitalizar as aspirações igualitárias, um tanto adormecidas atualmente, que orientaram os grandes movimentos sociais negros de década de 1930". Ou seja: "Ninguém melhor que um poeta para sugerir novos rumos no aproveitamento construtivo das energias intelectuais dos ‘talentos negros’".

No primeiro momento, Florestan faz referência à Frente Negra Brasileira (1931-1937), em segundo atualiza o que hoje ainda é latente e está vivo na poesia e no pensamento crítico e militante de Oswaldo de Camargo: a sua determinação de viver em prol da poesia de cunho social negro, como um Solano Trindade revivido.

Sem dúvida, a reedição desses primeiros dois livros (outros estão a caminho), eivados do vigor característico que os marcaram desde seu primeiro lançamento, mantém acesa a "razão da chama" da militância de um homem negro brasileiro que ainda tem muito a nos dizer e a nos ensinar.

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