Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Carolina de Jesus já sabia que fome mata o Brasil a começar pelos pobres

É preciso entender que principais vítimas do país são mulheres pretas, favelizadas, de periferias e de comunidades

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No final de semana estive pelos lados do Morumbi, para uma atividade em homenagem ao poeta português Fernando Pessoa, nas dependências da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano.

Mas não irei falar sobre este grande evento por aqui. Ele me impressionou, e muito, é verdade, e sou grato pelo convite feito pelo amigo e editor da Record Rodrigo Lacerda, mas eu fiquei impactado com o nível enorme de miséria na redondeza.

A caminho do local, de dentro do carro, com as janelas fechadas por segurança, vi um senhor com uma plaqueta levantada pedindo ajuda porque "estava passando fome". Na mesma tabuleta de papelão, com letras improvisadas, estava escrito ainda que ele tinha uma criança em casa.

A palavra fome é a que mais se tem ouvido nos quatro cantos do Brasil nos últimos tempos. O resultado desse levantamento é assustador. Pelos números compulsados em diversas pesquisas –e pelo que presenciamos nas grandes cidades brasileiras, sobretudo nos centros mais populosos–, é que o empobrecimento das famílias cresceu nos últimos anos de maneira assustadora, elevando a falta de alimento nos lares para o patamar de calamidade pública e humana.

Ativistas colam lambe-lambes com mensagens críticas a Bolsonaro nas colunas de sustentação do Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, no centro de São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

É óbvio que a fome no seio das famílias não nasce da noite para o dia. Ela é a causa e efeito de resultados de desgovernos, do alto custo de vida e da enorme e duradoura situação de desemprego da mão de obra ativa no país, que abarca um contingente muito grande de homens e mulheres que têm sobre suas costas a manutenção de seus lares, com obrigações rotineiras de pagamentos de impostos e cuidados com filhos e entes mais próximos.

O Brasil sempre foi flagelado por períodos prolongados de miséria e fome, desde tempos imemoriais. Sabemos que essa situação de calamidade existencial alcança uma parcela da população que, desde sempre, se mantém à margem da sociedade, sociedade essa privilegiada por castas e por acúmulo de riquezas geradas dos tempos de exploração da massa escrava africana, dimensionada pelo capital e o latifúndio.

Não me espanta que toda essa gente encastelada em privilégios de toda a ordem continue de costas para o próprio país, enquanto milhares de cidadãos –chamados de segunda classe– continuam mendigando nas ruas das grandes cidades ou à cata do que comer nos monturos e nos fartos latões de lixo depositados na porta da burguesia.

Quando vi aquele senhor, maltrapilho, com seus 60 anos presumíveis, de tabuleta em punho, reclamando uns trocados para matar a sua fome e a da criança que o aguardava em casa, fiquei pensando na dor que é dormir com a barriga vazia. Ou não ter o que comer suficientemente, e, mais ainda, acordar sem nenhum alimento disponível à mesa para as primeiras refeições do dia.

É um descalabro o que acontece em um país continental como o nosso, com as dimensões territoriais que temos, abundante riqueza natural de fauna e flora, seus cerrados, e um manancial hídrico de fazer inveja ao mundo.

Embora a cena tenha sido protagonizada por um senhor na rua, numa das áreas mais nobres da cidade —algo cada vez comum para a atual realidade brasileira e para a rica cidade de São Paulo—, dados mostram que continuam sendo as mulheres, mães solos que chefiam suas famílias, as que mais padecem pelo flagelo da fome.

A insegurança alimentar atinge seis em cada dez lares comandados por mulheres –a elas faltam, na mesa de cada dia, algum tipo de alimento de primeira necessidade. Esta dura realidade só se agrava e parece não ter prazo para acabar.

O brasileiro de qualquer idade não tem mais por onde respirar. Quando não é a violência policial para enlutar famílias inteiras, sobretudo com a matança injustificada de jovens –a maioria de negros—, a pandemia, a precariedade do acesso à saúde e à educação, a falta de moradia e de bens culturais de toda sorte, a população sofre com o abandono institucional dos governos, por falta de políticas públicas ou assistência social de toda ordem.

Carolina Maria de Jesus, a espetacular escritora mineira que viveu em São Paulo de 1937 a 1977, ano de sua morte, chegou a escrever em seu famoso diário que "a fome também é professora". Mas, para a autora do célebre livro "Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada", publicado em 1960, "o Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome". Ela escreveu que "quem passa fome aprende também a pensar no próximo e nas crianças."

Isso me remeteu a uma condenação ocorrida em 2017 e mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, o STJ. Na ação, uma mulher, mãe de três crianças –de 13, 10 e 3 anos– foi condenada em regime fechado a passar três anos na superlotada Penitenciária Feminina de Pirajuí –interior de São Paulo– por ter "furtado ovos de Páscoa e 1kg de peito de frango".

À época, o STJ negou habeas corpus requerido pela Defensoria Pública do Estado, simplesmente por não achar que a soltura da apenada fosse "urgente", embora a detenta estivesse longe dos filhos menores e mantida na cela lotada com um bebê de 20 dias.

Fico imaginando se o ministro que se debruçou sobre o habeas corpus tivesse passado fome em alguma ocasião de sua vida. Ou se alguma boa alma, em vez de abrir um boletim de ocorrência, pagasse caridosamente os produtos furtados pela senhora, em vez de levá-la a uma delegacia, como uma perigosa ladra de produtos de primeiras necessidades.

Podemos imaginar o quanto de dinheiro público e trabalho da Justiça seria economizado ao evitar uma ação como essa. No parecer expedido pelo STJ para manter a pobre mulher presa, a alegação de que "não é urgente" é gritante.

Pensar que no Brasil de hoje cerca de 33 milhões de pessoas estejam em grave situação de crise alimentar nos remete novamente à fala de Carolina Maria de Jesus e à situação dessa senhora condenada por furtar ovos de Páscoa e um pedaço de frango para atender a uma necessidade primordial dos filhos.

O que mais queremos com isso é trazer aos que nos leem uma reflexão sobre a nossa humanidade. Pensar também que a base de todo grupo inserido na gravidade alimentar é constituída por mulheres –mulheres pretas, favelizadas, de periferias e de comunidades.

Sim, os dados são gritantes e chamam a nossa atenção em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, mas outros centros urbanos, demarcados por um pequeno cinturão de riqueza com um perímetro de pobreza cada vez maior, estão soltando aos olhos do mundo.

Antes da pandemia do novo coronavírus, pelo menos 57 milhões de pessoas no Brasil estavam vivendo em situação de insegurança alimentar no país –em abril de 2021, esse número saltou para 116,8 milhões de pessoas sem acesso pleno e permanente a alimentos, segundo informações obtidas pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssan, com base em cálculos do ano anterior.

Para o levantamento do IBGE, a renda da população mais pobre não chega a R$ 415 mensais, de acordo com números mensurados em 2021, e ainda está caindo. A conta desse flagelo demonstra que 106,35 milhões de pessoas podem estar vivendo com apenas de R$ 13,83 por dia.

A insegurança alimentar, sem dúvida, tem de ser a principal pauta dos próximos governantes do país, a partir de janeiro de 2023. Não há como negligenciar mais essa situação gravíssima. É degradante andar pelas ruas das grandes cidades e observar o estado de miséria da população, cada vez mais abandonada e desassistida.

É uma ofensa a uma nação que se quer tão soberana como o Brasil. É uma violência aos cidadãos que procuram, com enormes sacrifícios e suor a escorrer pelo rosto, manter o país de pé e em condições de igualdade perante os povos civilizados.

Precisamos, no entanto, antes de mais nada, pensar que tipo de civilização queremos em comparação a civilizações que já conhecemos. O povo brasileiro grita por respostas urgentes, ações imediatas e pelo entendimento de que a governabilidade do território deva ser para todos, sem discriminações.

Negligenciar fatos como o que ocorre hoje na floresta amazônica –o assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira é inconcebível—, além do massacre dos povos tradicionais, o apagamento de comunidades quilombolas ou de grupos e organizações de sem tetos e terras, é, antes de tudo, uma aberração, uma miopia generalizada inerente àqueles que enxergam o país apenas pela lente embaçada do próprio umbigo.

Não se justificam –em pleno século 21, amplamente tecnológico– que as cenas de miséria e fome vistas nas ruas ou nos grandes centros urbanos continuem ainda a ser exibidas com a normalidade de um capítulo de novela do horário nobre da televisão.

A fome, como a maior mazela da incompetência dos seus governantes, não está somente matando de inanição os brasileiros mais empobrecidos, mas, a cada hora e a cada dia, está destruindo o próprio Brasil.

É bem aquilo que Carolina de Jesus, com o estômago vazio, do seu barraco na favela do Canindé, escreveu com toda a sua sapiência de mulher favelada e pensadora, indignada com um país tão pouco justo: "Quem inventou a fome, são os que comem".

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