Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Genivaldo e Vila Cruzeiro mostram como Estado mata negros no Brasil

É duro escrever sobre esta realidade bárbara na qual famílias são destroçadas pela dor, desespero e desesperança

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Conheci a história de Maurício Rodrigues. Ele é um dos mais promissores executivos brasileiros em atividade no país. Sua trajetória foi relatada em uma entrevista à revista Época Negócios, e, coisa rara, sua foto estampa a capa da publicação. Maurício é um homem negro, tem 47 anos e é o presidente da divisão de agronegócios da Bayer para a América Latina.

Podemos afirmar que o paulistano Maurício Rodrigues é uma presença rara no alto mundo corporativo brasileiro. Esta talvez seja a coisa mais certa a se dizer diante do quadro de barbaridade que continua a ser perpetrado contra a população negra e jovem do Brasil.

Quando jovens, como Maurício, que necessariamente não vêm de família rica, podem chegar ao topo do comando de uma das maiores empresas que conhecemos? Pelo andar da carruagem, e pela extensão dos dados causados pela perda de tantas jovens vidas, podemos dizer que nossas esperanças estão cada vez mais minguadas.

Movimentos de luta por direitos humanos e contra o racismo, como a Coalizão Negra por Direitos e a Frente Povo Sem Medo, fazem ato pedindo justiça no caso de Moïse Mugenyi Kabagambe, assassinado no Rio de Janeiro - Mathilde Missioneiro - 5fev.22/Folhapress

A cada dez jovens mortos no Brasil, oito são negros –na faixa de 15 e 19 anos, segundo levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com apoio do Unicef, o fundo das Nações Unidas para a infância, compreendendo os anos de 2016 a 2020.

Evidentemente que, por trás da lógica da matança desenfreada, revestida e amparada pela Justiça como ação policial, está enfronhado o mais perverso de todos os racismos, que até hoje nos oprime e nos condena, o racismo estrutural.

Sob essa capa as atrocidades continuam a ser praticadas, sem dó nem piedade, e têm na sua miragem homens e mulheres jovens –muitos dos quais podem muito bem ser um Maurício Rodrigues ou qualquer homem público alçado à estatura de cidadão de primeiríssima classe deste país.

Infelizmente, a cada dia, o que nos bate à porta, sempre de forma violenta, e nos chega pelas manchetes dos grandes jornais, que têm um impacto negativo na psicologia dos membros das comunidades e periferias, onde habita a maioria da população negra e pobre, são cenas e relatos em que ainda mais se referendam estigmas e estereótipos, que autorizam e fundamentam os massacres diários e as matanças, revestidas de ordem social, contra os que mais precisam da lei e da Justiça, sobretudo governamental.

Nossos olhos e ouvidos ainda estão impactados com o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, preso e morto asfixiado numa espécie da câmara de gás improvisada na caçamba de um camburão da Polícia Rodoviária Federal, em Sergipe, por estar de moto e sem capacete. O presidente da República, Jair Bolsonaro, que anda de moto sem capacete e nunca foi importunado ou preso, se pronunciou dizendo que a "PRF fez um trabalho excepcional". A cena lembra Auschwitz, dos tempos nazistas, na Polônia, a serviço do Terceiro Reich, que chegou a usar caminhões também como câmara de gás.

Genivaldo, negro e pobre, de 38 anos, é mais um nessa perversa estatística que contabiliza a toda hora o aumento de vítimas e mortes.

O Rio de Janeiro –a cidade maravilhosa, que agora se sugere escrever toda em caixa baixa– foi palco de outra chacina. Chacina, segundo os termos técnicos, é toda ocorrência com número mínimo de três mortes. Portanto, o governador Cláudio Castro, depois que assumiu o comando do estado, após o impeachment do juiz Wilson José Witzel –aquele que dizia para atirar "na cabecinha"–, acumula, com um ano na gestão, cerca de 39 chacinas e 178 mortes nas suas costas de comandante da polícia e do estado. O Rio pratica racismo institucional –quando há intenção de discriminar.

A Vila Cruzeiro, com 25 pessoas mortas, é a nova integrante de uma estatística macabra. Segundo dados do Instituto Fogo Cruzado, em parceria com o Geni-Uff –Grupo de Estudos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense, que aqui agradecemos pelas informações–, das 39 chacinas na gestão de Castro, 31 foram ocasionadas em operações policiais. Foram 150 mortes provocadas apenas pelos agentes do estado. De janeiro até agora, 82 pessoas morreram em 16 chacinas. O mesmo Fogo Cruzado revela que, de 2007 a 2022, o total de pessoas assassinadas pelas mãos de policiais do estado chega a 593. Ou seja, a farda mata, como aludia um cartaz em uma das manifestações.

O estado do Rio de Janeiro tem memória fraca para chacinas e chacinadores ou a única coisa que aprende é se sofisticar com essas barbaridades armadas.

Em 1990, por exemplo, o Rio amanheceu sob o sangue da chacina de Acari. Nela, 11 jovens tiveram a vida ceifada, sendo 7 menores. Em seguida, sem digerir os impactos da primeira, foi a vez da chacina da Candelária, com oito jovens massacrados por homens encapuzados em dois Chevettes. Na época, de acordo com dados levantados por grupos ligados à Anistia Internacional, pelo menos 44 pessoas que viviam nas ruas na região perderam a vida de forma violenta. Logo depois, tivemos a chacina de Vigário Geral, ocorrida na favela de Vigário Geral, na madrugada de 29 de agosto de 1993. Pelo menos 21 moradores foram mortos. Só um policial foi preso, sendo que outros 50 acusados ficaram livres.

O requinte é um só —invadem casas humildes ou barracos, ofendem os seus moradores e executam. Estão entre as vítimas pessoas pobres e negras, muitas delas sem qualquer registro de ocorrência policial, ou simples ato infracional ou delito.

Matar se tornou regra dentro do Estado de Direito. A vida de quem é preto e pobre virou artigo descartável para a tábua da lei. A tal Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro é a que mais mata por ações policiais no país. É uma vergonha. É um descalabro.

Não é possível que não consideremos a questão do racismo para essas ações policiais no Rio. O alvo tem sido populações pobres, pretas, faveladas e periféricas. O governador Cláudio Castro tem se omitido sobre essas ações de maneira vergonhosa, expondo o povo carioca e fluminense para o restante do país e as grandes nações. A letalidade das forças de segurança impõe medo à população, sob a marca de "atirar antes, perguntar depois". Sem dúvida, Cláudio Castro se mantém como fiel seguidor dos desmandos dos governos passados. Um estado recordista de ex-governadores presos. Fica o alerta.

A ideia de uma ação de segurança inteligente cai por terra quando a ordem não é prender e julgar, mas atirar e matar –inclusive tendo como alvo cidadãos inocentes.

Mas o Brasil, não só o Rio de Janeiro, traz o vermelho do sangue derramado de vítimas pobres e pretas de forma letal e dolorosa. Hoje, como no passado, a pretexto de "guerras contra o tráfico", muitas pessoas inocentes entraram na dolorosa estatística das mortes por forças de segurança. Enquanto isso, pouco ou nada o estado fez para atender às necessidades básicas da população, abandonados de serviços essenciais e flagelados pela fome e a miséria absoluta. Ainda assim, tem como paga o extermínio e a violência policial.

É duro escrever sobre tudo isso quase todas semanas neste espaço de jornal. É duro ver famílias destroçadas pela dor, pelo desespero e pela desesperança. O poeta catarinense Cruz e Sousa, que viveu entre 1861 e 1898, disse em um dos seus versos: "Os pobres, os rotos/ São as flores dos esgotos".

Ele que viveu no século 19, negro e pobre, conviveu diretamente com o regime da escravidão. Embora não escravizado, sentiu as dores enfrentadas pela população negra, mesmo após a abolição. Seus versos representam bem o estado de espírito partilhado por ele nos jornais da época.

Quando iniciamos este artigo falando da carreira bem-sucedida de Maurício Rodrigues, jovem homem negro, à frente de uma grande empresa, estamos aludindo a milhares de outros Maurícios Rodrigues que não terão a mesma oportunidade que ele, porque suas vidas foram interrompidas de forma brutal e desumana.

Um Genivaldo de Jesus Santos, bem amparado pelo estado brasileiro, poderia dar contribuições significativas para a população. Os 25 mortos na chacina de Vila Cruzeiro teriam destinos melhores se, antes de serem alvejados a bala, por ordem de um Estado matador, pudessem ter acesso a bens culturais de qualidade, escolas, esportes, trabalho e desenvolvimento humano adequado a todo cidadão.

A realidade é dura e cruel para uma boa parte de nossa população, hoje especialmente a do estado do Rio de Janeiro.

Os frutos da desordem, promovida pelas forças de segurança, são colhidos por aqueles que deveriam, em primeiro lugar, defender seu povo –ao contrário de eliminá-lo.

Sigamos na esperança de dias melhores. Não há outra coisa a se fazer senão acreditar no futuro –essa grande invenção forjada pela nossa mente e que nos faz suportar a desilusão nos homens e sobreviver.

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