Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Púchkin, de sangue negro africano, é o cavaleiro de bronze da literatura russa

'Camões da Rússia' tinha orgulho de suas origens e deixou uma obra que influenciou toda a arte do seu país

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​Na semana que passou li o livro "Cavaleiro de Bronze e Outros Poemas", do poeta russo Aleksándr Púchkin, na tradução da língua russa por Felipe Franco Munhoz, publicado pela editora Kalinka, em edição bilíngue.

Eu sempre tive uma grande fascinação por Púchkin, não só por ser considerado o maior poeta da língua russa, mas também, e, sobretudo, por ele ter inaugurado a moderna literatura do seu país de origem e por ter criado "as bases para que ela se desenvolvesse", de acordo com seu tradutor. Uma coisa, porém, não pode escapar de nossa visão —a origem negro-africana de Púchkin.

Retrato do escritor russo Púchkin
Retrato do escritor russo Púchkin - Reprodução

A obra e a vida de Púchkin são bastante interessantes. O poeta russo nasceu em Moscou, no dia 26 de junho de 1799 e morreu em São Petersburgo, no dia 29 de janeiro de 1837, após disputa de duelo com Georges D’Anthès, oficial francês da Guarda Russa, suspeito de seduzir sua mulher, a bela Natália Gontcharova.

Púchkin era considerado exímio atirador, mas levou um tiro na barriga, que o fulminou cerca de três dias depois, e, embora caído ferido, atingiu seu opositor na mão. Segundo carta atribuída a D’Anthès, até hoje contestada, datada de 1836, portanto um ano antes da tragédia, Púchkin era "furiosamente ciumento". Verdade ou mentira, a literatura russa perdeu a sua grande expressão.

Considerado o maior poeta da língua e fundador da moderna novela russa, Púchkin é chamado comumente de o "Camões russo". Escreveu também dramas, novelas e romances. Para diversos estudiosos da vida de Púchkin, a enorme repercussão de sua obra não influenciou somente o campo da literatura, mas da arte, a exemplo da música e do cinema, e não só na Rússia.

Vladimir Pliassov, pesquisador ligado ao Centro de Estudos Russos, parceria da Fundação Russki Mir —ou mundo russo— com a Universidade de Coimbra, em Portugal, atesta que o célebre romance em versos "Eugene Onegin", de 1833, "serviu de inspiração a Tchaikóvski" para compor a ópera "Yevgeniy Onegin", em 1879, e a coreógrafa Deborah Colker o espetáculo "Tatyana", de 2011.

Já o drama "Boris Godunov", de 1831, foi para o palco pelas mãos do compositor Modest Mússorgski, também no formato de ópera. Segundo ainda Pliassov, "a novela ‘A Dama de Espadas’ constituiu a fonte à qual Leon Tolstói foi beber na composição de ‘Guerra e Paz’", tendo Anna Kariênina sido inspirada na filha de Púchkin.

Em 2010, a Organização das Nações Unidas instituiu o Dia Internacional da Língua Russa, como uma das seis línguas oficiais de trabalho —equiparando-a a árabe, chinês, espanhol, francês e inglês—, com celebração no dia 6 de junho, aniversário de Aleksándr Púchkin.

Púchkin sempre tratou de amor e liberdade. O que tem a ver ele com tudo isso que estamos falando? Simples: o poeta russo tem correlação consanguínea africana por parte de Abraão —ou Abram— Petrovich Gannibal, seu bisavô, que viveu de 1696 a 1781, até hoje considerado o primeiro intelectual negro da Europa.

Gannibal é natural do antigo Sudão Central, região sul do lago Chade e ao norte de Camarões, segundo os estudos mais recentes. Sua trajetória é curiosa. Filho de um príncipe ou chefe tribal, morto em batalha, foi capturado e levado para Constantinopla, de navio, em 1703, permanecendo no Império Otomano por pouco tempo.

Os relatos dão conta de que chegou à Rússia como escravizado, levado pelo embaixador russo Sava Vladislavich-Raguzinski, que representava o czar Pedro, o Grande. Por ordem de superiores do embaixador —entre eles Piotr Andreievich Tolstói, bisavô do escritor Liev Tolstói—, Abraão foi selecionado e levado para Moscou, na leva de "alguns escravos africanos espertos" para servir no palácio.

O czar impressionou-se muito pela inteligência do jovem. Vendo nele grande potencial para o serviço militar, o levou para casa e o batizou em 1705 na igreja de Santa Paraskeva. Após ser educado na França, onde se formou como engenheiro militar, Abraão Gannibal tornou-se governador de Reval, atual Tallinn, e, logo depois, general-em-chefe para a construção de fortes e canais na Rússia —uma espécie de André Rebouças de lá.

O pai de Púchkin era Sergei Lvovich Púchkin, que descendia de uma ilustre família da nobreza russa. Sua mãe, Nadezhda Ossipovna Hannibal, descendia de sua avó paterna, de origem alemã e escandivana. Era filha de Ossip Abramovich Gannibal e de Maria Aleksejevna Puchkina. O pai de Ossip, portanto, bisavô de Púchkin, foi exatamente Abraão Petrovich Gannibal.

O poeta russo tinha orgulho de suas origens africanas, tanto que a contou numa novela intitulada "O Negro de Pedro, o Grande", que ficou inacabada. Susana Fuentes, doutora em literatura comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Uerj, no belíssimo trabalho "Púchkin e Machado, O Ser Negro, Formas de Ouvir o Outro", defende o poeta russo. Segundo Fuentes, há quem duvide que Púchkin "seria descendente de negro", daí a linha de seu estudo sobre ele e Machado de Assis, sobre quem pairou a mesma dúvida.

Nesse sentido, ela revela que Boris Schnaiderman cita o destacado historiador literário Dmítri Mirsky e o antropólogo Anútchin —o último "imbuído de preconceitos racistas, não poderia conceber que um negro desempenhasse papel tão importante e fosse um antecessor direto do poeta nacional russo".

A admiração de Púchkin pelo seu parente é tão grande que ele o concebeu no personagem Ibraiam de "O Negro de Pedro, O Grande", em que "é notável como não se esquiva de revelar espaços de desconforto, o lugar fora do centro desse protegido de Pedro", argumenta Fuentes.

E então, o que esperar de "O Cavaleiro de Bronze e Outros Poemas"? De cara um livro que devolve o lirismo ao clássico texto de Púchkin, consolidado como modelo poético adotado ainda hoje na Rússia, e brilha por ser a primeira edição integral brasileira.

Púchkin ainda é um grande enigma, e sua história e literatura precisam servir de inspiração para todos nós que nos intitulamos escritores afro-brasileiros.

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