Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Racismo contra Titi e Bless é prova de que nada mudou desde a escravidão

Ideia do sistema escravista está aí, ainda viva, pulsante, na mente e no coração das pessoas brancas

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"Pretos imundos", alegando que eles deveriam "voltar para a África". Estas foram as palavras usadas por uma mulher branca, de meia idade, no último sábado (30), num restaurante em Portugal localizado na orla da Costa da Caparica, contra os filhos adotivos negros do casal Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank —Bless Ewbank Gagliasso e Chissomo Ewbank Gagliasso, ou Titi, nascidos no Malawi, país da África Oriental. O casal de atores passava férias com os três filhos na região –o terceiro é Zyan Ewbank Gagliasso.

Giovanna Ewbank com os filhos Titi, Bless e Zyan na propaganda para o Dia das Mães Riachuelo - Divulgação

Além do ódio recreativo contra pretos e pretas mostrado no episódio, há outro fato enormemente perturbador: a ojeriza contra o continente africano dito neste "voltar para a África".

O ataque aos filhos de Gagliasso e Ewbank vai muito além de um crime de ódio racial: tem a ver com a doença herdada da escravidão. É uma herança doentia que nos faz entender como o sistema escravista foi perverso, colonial e desumano, e mantém seu sustentáculo até hoje, sobretudo no Brasil e em Portugal, país europeu tido como o principal sustentador e propagador do tráfico de pessoas negras no mundo. Segundo o escritor Laurentino Gomes, autor da trilogia "Escravidão", cerca de 4, 8 milhões de africanos foram escravizados para o Brasil.

A desumanização propagada pela escravidão, que fez o jurista e poeta Luiz Gama dizer que "em nós, até a cor é um defeito", mote para a formulação do belo romance "Um Defeito de Cor", clássico de Ana Maria Gonçalves, é o ativador do gatilho do racismo ainda hoje praticado entre brasileiros brancos e também entre europeus, entre os quais portugueses, como exemplifica o episódio contra Titi e Bless, assistido por todos nós pelas redes sociais e pelos meios de comunicação.

Eu conversava neste fim de semana com uma excelente interlocutora antirracista, ex-prefeita de São Paulo, sobre a necessidade de criação de um museu da escravidão, como o que existe nos Estados Unidos e em alguns países africanos, e um museu dedicado aos judeus, como o Museu do Holocausto.

As dores do racismo não podem continuar doendo apenas nas costas dos negros brasileiros, mas precisam arder nos brancos também. A ideia colonial de branqueamento da população perpassa todo o mundo, como se a "purificação da raça" (conceito que biologicamente não se sustenta) só existisse para os arianos (ou brancos).

O que é grave é que o ato de racismo, muitas vezes, é tratado como um mal-entendido, um equívoco, não como um crime dos brancos contra os negros. A senhora que xingou os filhos de Gagliasso e Ewbank foi escoltada pelos policiais da Divisão de Comunicação e Relações Públicas de Portugal como se estivesse indo a um passeio. Não foi algemada, sequer alteraram a voz contra ela, apesar de ela ter mantido os xingamentos e destratado os policiais que a abordaram, deixando a delegacia "após prestar depoimentos".

Jornais da imprensa portuguesa destacaram que o fato de ela ter sido solta imediatamente depois, e sem pagar fiança, foi porque se constatou que ela "estava alcoolizada" no ato do crime racista. Um grupo de 15 turistas angolanos, todos negros, também foi alvo da criminosa.

Toda vez que uma cena dessas vem à tona, no geral via imagens deprimentes, nos conscientizamos que estamos muito longe de superar o mal do racismo no mundo atual, porque o racismo está encapsulado nas mentes humanas, alimentadas por uma educação eugenista, odiosa e excludente.

O racismo faz sentido também como a dominação entre povos, no caso, entre europeus contra africanos, seus descendentes ou correlatos. No entanto, a forte narrativa dos primeiros irrompeu pelo mundo como uma verdade absoluta, com forte aceitação no Brasil, feito um rastilho de pólvora referendando a ideia de "sub-raça", dentro de um contexto que incluía descrições detalhadas do fenótipo humano e da geografia do continente africano. De um lado, estudos sobre crânio, cor da pele –o chamado "defeito de cor"– tipo físico e sanguíneo, aparência; de outro, dados sobre a região, como um local inóspito e desértico, hostil, selvagem e tribal. Assim é vista a África e seus habitantes, dentro ou fora do continente.

De forma geral, o que assistimos diariamente, deprimente do ponto de vista humanitário, é a constatação de que nada mudou para além da chibata, para além do pelourinho público e privado. O chicoteamento hoje atinge as mentes e corações, mais do que a carne das costas, de afrodescendentes no Brasil e no mundo afora.

As humilhações públicas, veiculadas rotineiramente pela televisão, cansam e adoecem. Mas a lição atinge lentamente a população branca, que se repete nos seus modos e nos gestos racistas, criminosos e desumanos. Essa triste herança assola lares em toda a parte do Brasil, o que se percebe diante de assassinatos de jovens negros, como o de Moïse Kabagambe, e de casos de trabalho doméstico escravo, entre os quais se destaca o de Madalena Silva, que passou 54 anos servindo a uma família branca sem receber salário ou ter acesso a direitos, com a justificativa de que "era da família", mas longe de ter direito a heranças e bens.

É preciso agir sem cumplicidade nos casos de racismo no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Enquanto criminosos e criminosas racistas saírem ilesos e ilesas, pela porta da frente das delegacias, após serem detidos ou detidas, vai ser sempre essa justiça de faz de conta contra uma imensa população que não tem a quem apelar ou recorrer.

Precisamos ir mais longe, e não basta mais passeatas e abaixo-assinados. A ideia do sistema escravista está aí, ainda viva, pulsante, na mente e no coração das pessoas... brancas. Vamos nos ater à lição deixada por Luiz Gama (1830-1882) –"o primeiro dos abolicionistas", como definiu o romancista e amigo Raul Pompeia, impactado por sua morte.

Indaga Gama se "deverão os amigos da humanidade, os defensores da moral cruzar os braços diante de tão abomináveis delitos?" Penso que não.

Como declarou Giovanna Ewbank, reverberando o ódio ao racismo praticado contra seus pequenos filhos pretos: "Vamos passar por cima dos racistas".

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