Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Autores pouco conhecidos têm obras comparáveis às dos grandes

Enquanto literatura for feita de apagamento e negação, não será verdadeiramente brasileira

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Os três livros que li nos últimos dias me chamaram a atenção pela desigualdade também na literatura brasileira —e são de autores que têm bagagem literária e qualidade de conteúdo e forma.

A desigualdade a que me refiro diz respeito aos espaços de privilégio na grande imprensa, especialmente nas seções destinadas a livros e autores nacionais e estrangeiros —no geral publicadas no final de semana.

Paulo Vicente Cruz estende duas cópias do seu livro, "Enquanto os gigantes dançam"
Paulo Vicente Cruz, escritor de 'Enquanto os Gigantes Dançam' - Instagram/Reprodução

Esses três autores e seus livros são o mineiro Luiz Humberto França, escritor, dentre outros, de "A Caçada"; o carioca Paulo Vicente Cruz, de "Enquanto os Gigantes Dançam", este, um bom minicontista, que já havia lido no original; e, por último, a paulistana Neide Almeida, a poeta de "Nós: 20 Poemas e uma Oferenda".

São, todas essas obras, de uma textura literária bem diferente uma da outra, mas que trazem, em si, uma coerência de domínio de linguagem que não deixa a desejar quando comparada à de autores já consagrados.

Luiz Humberto França é um "prolífico escritor", segundo o seu prefaciador, Marcus Macêdo. Em "A Caçada", o experiente jornalista e escritor premiado pela Associação de Imprensa do Triângulo Mineiro e Alto Parnaíba, mistura, com rara técnica, ficção e fatos ao narrar a história de Juvêncio, que ficou conhecido como "Bandido de Itaipu", "Homem-Lenda" ou, ainda, o "Rambo das Perdizes" —ou seja, uma espécie de Lázaro Barbosa, o conhecido "serial killer de Brasília", bandido que aterrorizou tanta gente em junho de 2021.

A história de Juvêncio é desses casos que, pelas mãos de França, que conheceu o caso no início da carreira jornalística, reporta a máxima do escritor americano Gay Talese, quando diz que "o novo jornalismo, embora possa ser lido como ficção, não é ficção". De fato.

França transforma a caçada a Juvêncio numa obra eletrizante, trazendo para a realidade a ficção, e a ficção para a realidade.

Já Paulo Vicente Cruz, com seu "Enquanto os Gigantes Dançam", trabalha com maestria suas mini-histórias, espécie de "prosa curta" – tanto consagrada por Charles Baudelaire, na França, com seus "Pequenos Poemas em Prosa", quanto por Cruz e Sousa, no Brasil, com parte do seu "Missal".

Vicente Cruz, da linhagem da romancista Eliana Alves Cruz, de quem é irmão, se destaca pela linguagem e pela concisão, especialmente em histórias como "Depois dos Fogos de Sábado" e "A Calma Permanece (Variação Sobre o Fim do Mundo)", na qual escreve: "A fumaça vem de longe, os estrondos de morteiros vêm de longe, o barulho de rajadas de fuzis vêm de longe, os helicópteros vão para longe. Essa rua próxima segue em paz. A calma permanece. Não há maior violência".

Sua mão certeira, talhando a massa bruta dos temas do cotidiano, pelo lirismo, "nos faz enxergar o que muito de nós não conseguimos ver", conforme atesta Daniela Kopsch, "algo do qual todos nós precisamos". É um escritor de altos voos, mas ainda invisibilizado pela crítica.

Neide Almeida é uma poeta ativista. Sua estreia com "Nós: 20 Poemas e Uma Oferenda" ilumina as pegadas do caminho dessa filha da periferia paulistana, mas de pais mineiros.

O ser e o estar no mundo integram sua poesia. Em "Corpo", confessa: "Meu corpo é um campo de solo revolto/ sob pés guiados por tambores/ Meu corpo é um campo aberto/ arena de muitas disputas". Já em "Alfanje", se rebela: "Não se cala uma mulher/ com máscaras —nem de ferro, nem de flandres./ Sua verdade é lâmina afiada/ rompe todas as mordaças".

Dela disse Lívia Natália, outra bela poeta: "Somos todos corpos-quilombos, mais do que corpos aquilombados, somos estes seres feitos de matéria e mistério. O ritmo melancólico dos tumbeiros ainda está nos nossos corpos, ainda informa nossas almas, é desta travessia ancestral poetizada nos 21 textos deste livro que somos parte, e o somos graças ao que dessa travessia relata esta mulher negra-diaspórica".

É sobre isso que a literatura não deve ser feita: de apagamento e negação. Enquanto isto ainda acontecer, não teremos uma literatura verdadeiramente brasileira.

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