Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Lima Barreto, o cavaleiro andante da literatura brasileira, ficou esquecido

Centenário de morte do autor de 'Triste Fim de Policarpo Quaresma' está em segundo plano em ano de Independência

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Daqui a algumas semanas, mais precisamente no dia 1º de novembro, serão completados cem anos que o cidadão Afonso Henriques de Lima Barreto morreu.

Nas ondas de efemérides que se destacam no país desde o início do ano –vide o centenário da Semana de Arte Moderna, ou os 200 anos da Independência do Brasil–, a lembrança de um dos nossos maiores escritores ficou para segundo plano.

Nenhum planejamento de festejos à vista —seja por meio de exposições ou de seminários, não há nenhuma homenagem cívica nos subúrbios cariocas, onde ele viveu e morreu.

Sequer há o anúncio da reedição de sua vasta obra completa, em que se incluem belos romances –de "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" a "Triste Fim de Policarpo Quaresma", passando por "Clara dos Anjos", sua obra negra referencial–, precisos contos, sempre muito irônicos e novelescos, e cortantes e satíricas crônicas.

"Lima Barreto - Triste Visionário", biografia do escritor escrita por Lilia Schwarcz - Folhapress

Lima Barreto parece um ilustre desconhecido para os governantes e a comunidade literária tupiniquim. A que se deve tudo isso não sabemos ou sabemos e ignoramos solenemente.

Em questão, Lima Barreto tem problemas existenciais desde nascença, começando pela orfandade de mãe e, em seguida, por ter um pai doente e enlouquecido.

Nascido sete anos antes da abolição da escravatura –no dia 13 de maio de 1881—, era neto de negros escravizados por parte de pai, João Henriques de Lima Barreto, que ganhava a vida como tipógrafo, tendo trabalhado na Imprensa Oficial e traduzido do francês o "Manual do Aprendiz Compositor", de autoria de Jules Clave, que se tornou referência à época. A mãe, Amália Augusta, era professora do que hoje seria o ensino fundamental.

As marcas deixadas pelo fim da escravidão –e com ela do sistema monárquico brasileiro– provocaram profundas sequelas no jovem estudante e futuro escritor. Uma delas foi a aquisição de um forte sentimento crítico –praticamente anárquico— em relação ao regime republicano.

Lima Barreto vai se opor ao regime em quase todos os seus escritos, especialmente nos romances e nas crônicas. No romance, ele vai desancar com os "comparsas" do novo sistema político, incluindo as instituições e os grandes donos de jornais. Nas crônicas, atua com feroz mordacidade, sobretudo contra os poderosos, ou seja, os que detêm o poder e o capital. Sobre uns e outros, Lima Barreto chegou a escrever (está em "Os Bruzundangas") algo bem nosso, semelhante a tudo o que o grande escritor nos deixou: "Os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões".

Dentro da ordem prática, era pontual em Lima Barreto jamais virar a chave. Ele mentoreou o tempo presente com base no passado: falou do período escravista com rancor e desdém. E da República, a insígnia da nova ordem, com a emoção de quem estaria próximo ao fuzilamento social (qualquer semelhança com o sonhador Policarpo Quaresma é mera coincidência).

Lima Barreto, a grosso modo, se constituiu, pelos arrabaldes de Todos os Santos, no cavaleiro andante da literatura brasileira –ele parte como uma espécie de Dom Quixote do subúrbio a observar o mundo ao seu redor, desafiando a todos, narrando em primeira ou em terceira pessoa o dia a dia da vida cotidiana da cidade e do país.

É uma espécie de cavaleiro de triste figura a rondar ruas mal pavimentadas e assombradas e seu principal alazão são os trens de passageiros de terceira categoria que correm pelos trilhos da linha férrea da Central do Brasil.

Esse Lima Barreto derrotado e vitorioso ao mesmo tempo é que povoa o hospício e os botequins da baixa classe. É o mesmo que vai –embora maior e mais talentoso do que muitos dos seus pares da literatura– ser ignorado pela grei da Academia Brasileira de Letras até perecer pobre, esquálido e esquecido no seu quilombo suburbano.

É triste ver se aproximar a data do centenário de sua morte com o mesmo desprezo com que ele foi relegado pelos seus pares enquanto ainda vivia.

Lima Barreto era um observador arguto. Se não fosse grande ficcionista, certamente as crônicas que nos legou o eternizariam. E tinha olhar clínico: a miséria, o casario pobre e a gente humilde e preta eram seu foco.

E se antecipou a denúncias: "Não há bairros, não há esquina, não há rua, não há praça em que não se topem às dezenas com mendigos de todas as nacionalidades, de todos os sexos, de todas as idades. Um coração piedoso que desse as esmolas pedidas diariamente teria que ter a fortuna de um milionário para não arrebentar as finanças ao fim de um mês".

Nada mais atual e visionário como este Lima Barreto (voltaremos ao tema).

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